"Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou"
Odisséia, Homero
por lelecoaa
Aos poucos a neve parava de cair. Vinha sendo assim nos últimos tempos: neve, neve, neve. Quando ela parava, era por pouco tempo. Esses períodos garantiam que uma parte da neve derretesse, mas não eram muito melhores, o vento soprava violentamente e a sensação térmica era praticamente a mesma.
O garoto olhou para o céu e arrumou o seu casaco para ficar mais protegido. No tempo das eternas chuvas, havia pensado que não podia piorar, mas a neve provou o contrário. A sua idade nem ele mesmo sabia – afinal, eram tempos difíceis desde que os deuses foram embora - mas provavelmente não devia ter mais que quinze anos. Ele terminou de subir a pequena colina, tomando cuidado para não escorregar, e viu o que estava procurando.
Um castelo era a única construção que ainda podia ser identificada claramente com toda aquela neve. Será que era aquele mesmo? A sua última pista não o tinha levado para lugar nenhum. Ali seria diferente? Ele fechou os olhos e uma imagem veio à sua cabeça.
A deusa tocou a testa de uma criança, curando-o de suas doenças e iluminando a sua mente.
Aquela imagem era um indício de que naquele lugar o véu se comportava de uma maneira estranha, não o suficiente para uma pessoa normal perceber, mas ele não era exatamente normal. Aquela alteração no véu era Khäer, a marca. Um deus vivera ali. E de repente, ele simplesmente sabia toda a história daquele castelo. Aquele era o lugar.
Abriu seu mapa e segurou firmemente quando o vento ameaçou levá-lo, procurou em vão uma maneira de entrar – um túnel, talvez – sem precisar escavar tanta neve. Se não encontrasse uma entrada tudo ficaria ainda mais difícil, a pista falsa também custara sua única pá.
Guardou o mapa novamente, sentou no chão e deslizou morro a baixo. Naquele lado, o morro era mais alto e íngreme, conseguiu alguns arranhões, mas nada muito sério.
Só havia dado alguns passos quando afundou até os joelhos na neve, o chão pareceu estalar e rachaduras se espalharam à sua volta. Um buraco se abriu e ele foi tragado. Escorregou por um tipo de túnel irregular, mesmo estando bem agasalhado, ele podia sentir sua pele queimar pelo atrito com o gelo, algumas pedras fizeram rasgos em suas roupas e machucaram seu rosto. Filetes de sangue escorriam das suas feridas. Foram apenas alguns segundos, mas foram suficientes para fazer um bom estrago.
Repentinamente, o garoto se viu caindo em uma sala de pedra. Atordoado, ele percebeu que estava dentro do castelo, mas alguma coisa estava errada.
Três mulheres de cabelos embrenhados estavam sentadas em uma rica tapeçaria, admirando, quase hipnotizadas, o fogo que ardia na lareira;
Eram bruxas.
Talvez ele pudesse sair dali disfarçadamente, elas estavam tão concentradas...
- Eu não teria tanta certeza, criança – disse a mais alta das três, parecendo ler seus pensamentos. Ela pegou alguma coisa em um pote e lançou no fogo.
Por um momento ele pôde encará-las melhor. Eram tão magras que a pele parecia colada nos ossos, seus cabelos eram longos, sujos e bagunçados, os poucos dentes que elas ainda tinham estavam podres. Uma delas era corcunda, outra era estranhamente alta, a terceira tinha um olho faltando e todas usavam vários anéis nos dedos. No geral eram parecidas, provavelmente eram irmãs.
A coisa que queimava no fogo começou a exalar um cheiro doce e quente, que relaxava o corpo. Aquilo de alguma forma estava mexendo com o menino. Sua mente estava ficando nublada...
Ele viu um rosto que não via há algum tempo, um rosto de aspecto jovial e alegre. Sua mãe sentou-se ao seu lado.
Sentou-se ao seu lado? Sim... ele estava novamente em casa. A mãe alisava seus cabelos e sorria, feliz por seu filho finalmente estar bem... o que estava sendo dito se perdeu no delicioso cheiro dos biscoitos caseiros que ela fazia e de repente o seu pai também estava ali ... E eles passeavam na praça da cidade... E assistiam aos espetáculos dos malabaristas... Sua mãe apertou seu braço, não com carinho, mas com raiva. Aquilo machucava. Olhou pra ela perguntando o porquê daquilo, só que não foi realmente necessário. Por alguns segundos a neblina que cobria sua mente ficou menos densa...
A mais alta das irmãs bruxas segurava seu braço, claramente sem boas intenções. Ele conseguiu se soltar, pegou sua adaga e a agitou no ar. Sentiu que acertara alguma coisa, mas não sabia o que. Estava ficando atordoado novamente.
- Maldito, maldito! – a bruxa corcunda praguejava enquanto saltitava ao redor da sala, mesmo parecendo boba - quase infantil - ela inspirava medo, seu jeito lembrava um tigre espiando sua presa.
E então o garoto desmaiou.
(...)
Acordou e percebeu que a sala estava diferente, símbolos vermelhos cobriam tudo, do chão ao teto. E pelo cheiro ele percebeu que não era tinta.
Estava em pé, de frente para um espelho, item muito utilizado por bruxas. Tentou se mexer, mas algum tipo de feitiço o mantinha preso.
- O que você quer aqui, criança?– a bruxa sem um olho se materializou em sua frente.
- Foi um acidente, eu só tava procurando um abrigo.
- Não é o que isso mostra. – disse erguendo o mapa do castelo - Parece que nós vamos ter que obrigá-lo a falar.
- Eu sei que nem mesmo o feitiço de uma bruxa poderosa pode me obrigar a agir contra minha vontade, é a Lei do Livre Arbítrio. – e cuspiu nela.
- Maldito, maldito! – guinchou a bruxa corcunda também se materializando no ar.
Com as costas da mão a bruxa limpou o rosto - Quem mencionou feitiçaria, criança?
Uma faca enferrujada surgiu de algum lugar, a bruxa caolha riu sadicamente, e a corcunda acompanhou abobalhada.
O garoto gritou quando a faca rasgou a pele do seu braço.
- Já está assim? Nem foi um corte fundo, eu só estou marcando o gado. – ela desenhou um símbolo estranho no braço dele. – Já pretende falar?
- EU JÁ DISSE!
A bruxa lambeu o sangue da faca.
-Irmã, parece que vamos precisar ser mais convincentes – A faca foi mais fundo no braço dele.
- HÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!
- Pode deixar, irmã. – A bruxa mais alta se materializou no ar, um pano empapado de sangue estava enrolado onde deveria haver uma mão.
- Hãn!? Mas nós não sabemos quem ele é.
- Não sabemos, não sabemos! – concordou a bruxa corcunda.
- Estou certa de que ele não é uma ameaça. Além disso, nós não temos uma refeição decente há algum tempo.
- Há algum tempo, há algum tempo!
- Por favor, não me interrompa enquanto eu falo, irmã. Ele pode não ser um bebê, mas não é de todo ruim, ainda não foi totalmente corrompido.
- Não foi, não foi!
A mais alta das irmãs deu um tapa forte com sua mão boa na cara da corcunda que caiu no chão chorando.
- Me desculpa, irmã, mas eu pedi para você não atrapalhar.
- Tem certeza? – perguntou ainda apreensiva a bruxa caolha.
- Claro que sim! Se sirvam, mas façam um favor: guardem a mão direita, eu preciso de uma para colocar no lugar. Há... E façam-no sofrer bastante.
- Não, por favor! Eu conto tudo... Por favor!
A bruxa segurou o braço dele, e lambeu o sangue das feridas.
- Nós vamos ter um bom jantar.
A faca foi erguida.
O garoto orou para todos os deuses, Ather principalmente.
+ comentários + 5 comentários
Léo, uma excelente estréia cara!
Pô! Gostei demais desse texto cara!
Tudo ficou perfeito, o clima, as descrições, a cena com as bruxas! Cara! Isso ficou sensacional!!
A tortura ficou muito bem feita, nos mínimos e perturbadores detalhes!
O final deixa a gente ansioso pacas pela continuação!
Meus parabéns cara!
Uma abração e até mais!
Pow o João falou tudo o que eu tinha para descrever esse texto. Muito boa a cena da ilusão. Realmente é um texto bem explicado. A cena da tortura foi demais, o jeito que você descreveu a faca penetrando na pele do garoto foi realmente sensacional. Estou aguardando a continuação ein!
Também achei fantástico!
Parabéns man!
Vou esperar pela continuação com certeza!
Bella, que bom que você gostou! Sabe o quanto sua opnião é importante pra mim, né? hehe
Lá no fórum tem um tópico de apresentação, quando puder passe lá. Beijos!
:o eu adorei, Lelecoaa! Gosto muito desse seu estilo de narrativa! Lembro dos contos da Fenix q deixou saudades no CP :D
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