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Profany, Contos Apócrifos - #1

Profany

O mundo está diferente. uma nova raça divide espaço com os homens na Terra. Chamados Nefilins, outrora foram os Anjos de Deus, mas por um revés do destino, foram derrotados por Satanás e lançados na Terra. Nesse novo mundo, não se ouve mais a palavra de Deus, pois o Diabo se sentou em seu Trono. Mas um pequeno grupo de nefilins tem um plano pra mudar essa situação.

Por Anderson Oliveira.




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Por: Anderson Oliveira

01. O Evangelho de Profany, parte 1.

— Eu não imaginava que desprezaria tanto o fedor desse mundo.

O cajado golpeia a terra árida e dela arranca porções de poeira que sobem ao vento. Os pés machucados mal cabem dentro das sandálias gastas que carregam alguém que mal se acostumou aquilo que todos os animais, desde os mais simplórios, já sabem fazer desde os primórdios dos tempos: a caminhar. A caminhar de verdade, no simples ato de colocar um pé na frente do outro e manter o equilíbrio de todo seu peso. Um esforço descomunal no começo. Um desconforto sem sentido agora. Ele lembra do tempo em que bastava sua vontade, bastava um único desejo e o universo dobrava diante de si.

Mas isso foi há algum tempo. E ele ainda se sente estranho com essa noção mortal de “tempo”. Enquanto divaga sobre essas coisas que no passado não teria importância alguma, ele percebe, quando o Sol nascente fere suas retinas lhe obrigado a tapar o rosto com o antebraço, que chegou ao seu destino. As velhas sepulturas esquecidas, cobertas de musgo e toda a sorte de deterioração, ainda de uma época que aquele solo era chamado de Alemanha, uma época onde os homens tinham fé e esperança no pós-vida. Uma época onde sua espécie era adorada como emissários da vida eterna e suas figuras ornamentavam as tumbas em belas estátuas de mármore. Uma época que, ele, Noriel, quer que volte.

Noriel adentra pelo cemitério, ainda mancando, com o cajado rústico guiando-lhe o caminho. Lembra de quando era um anjo de Deus. De quando os anjos existiam. De quando Deus lhe falava... Tempos há muito no passado. Quando finalmente chega até a velha capela, um vulto familiar porém não muito amistoso o espera. Uma lâmina tosca risca o assoalho entre os pés de seu portador. Este, sentado no degrau do altar, com sua capa outrora branca pendendo sobre seus ombros caídos, tentando esconder o rifle AK-47 que pende pela alça. Assim que Noriel se aproxima, o outro lhe lança um olhar medonho, culpa do olho azul ausente na órbita esquerda. Seus cabelos outrora loiros já começam a branquear, assim como sua barba que antes não tinha, no claro sinal do implacável e maldito tempo que agora é carrasco de homens e anjos.

— Ainda bem que pode vir, Lorde Gabriel. — Saúda Noriel erguendo a mão direta, passando o cajado para a esquerda. Aquele diante de si já fora o Arcanjo Gabriel, Jibreel entre os muçulmanos, o anjo da anunciação. Sempre que se manifestava aos homens, o destino das nações era mudado pelas mensagens divinas que trazia. Mas os últimos tempos foram difíceis, e pelo que diz seu rosto, não há nenhuma mensagem para dar. Não é agora que as nações se transformarão. Do contrário, é de Noriel que ele espera ouvir a boa nova.

— Então, meu jovem. Espero que não me faça perder... — e novamente essa palavra assombrosa aparece. — ...tempo.

— Não farei. Tenho a solução para por fim à guerra...

— De qual guerra fala? Já vi muitas...

— Daquela que nos condenou a isto! — e, num tom irado, Noriel arranha o próprio braço.

Gabriel vira o rosto. A lembrança daquele dia lhe doí mais do que a dor de precisar respirar para viver. O dia em que tudo, nos Céus e na Terra mudou para sempre, além de qualquer profecia, além de qualquer juízo. O dia em que Satanás sentou no trono do Senhor.

Pela contagem mortal, era o ano cristão de 2012. O mundo seguia firme. Os homens em guerra, a fome matando os pobres, a natureza cada dia mais devastada e pagando com terremotos e furacões o preço de sangue. Apesar a visão de que os homens estavam perdidos, tudo estava de acordo com o plano. Nos Céus, num plano espiritual elevado, habitado apenas pelos anjos em seus coros, eles faziam a manutenção das leis do Universo. Era um trabalho automático mas não era estressante, pois não havia ali as leis do tempo para causar-lhes o cansaço ou o aborrecimento. E também porque os anjos eram seres elevados, inteligentes e eternos. A perfeição da Criação, abaixo unicamente do próprio Criador. Foi quando, sem nenhum aviso, sem nenhum sentido, tudo mudou.

Da Terra, se via o céu se tingir de vermelho em fulgurantes clarões. Um espetáculo bonito aos olhos do viajante, mas que logo teria suas terríveis consequências. Do Alto, nos Céus, a sua presença ali causava medo entre os anjos. Aquele que há muito fora banido, jogado na Terra com seus partidários, que ainda aguardaria o dia do seu juízo e castigo nos poços profundos do Inferno. Ele estava lá, e toda a sua corja. Suas asas resplandeciam por onde a visão alcançava. O ouro de sua armadura contrastava com o manto vermelho escarlate como de uma pintura barroca. Seus cabelos longos e brancos, antigos como o próprio Universo, chegavam ao chão. Seus olhos fitavam a todos como um sorriso crescente nos lábios. Era Satanás em pessoa. Por Shaitan e Serpente fora chamado.

— O que é isso?! — se admiravam os anjos, pasmos com tamanha audácia, por não dizer falta de noção daquela cena. Como conseguiu entrar? Como conseguiu voltar? Mas as questões logo foram silenciadas quando o primeiro general daquele exército dos demônios atacou. Logo, os anjos ali presentes se armaram em batalha. Eram em maior número, não teria como não vencer. Era agora então? A guerra final? Era o dia do juízo?

— Todos morrerão! — disse Satanás, ainda imóvel no seu lugar, enquanto seus partidários com suas lanças e espadas de enxofre brandiam contra as lanças e espadas de fogo dos angelicais. Suas palavras pouco foram notadas naquela confusão. Menos por uma figura, que majestosamente vinha ao seu encontro. A armadura de ouro envelhecido mal brilhava. Sua túnica dourada tremulava em seu caminho. As asas douradas se fechavam às suas costas enquanto sacava sua espada. Feita do fogo divino, mas sólida como metal comum. Tal espada, nos primórdios, baniu Satanás, quando ainda era Lúcifer, o portador da luz, para o mundo mortal. E tal espada o baniria novamente, agora para as profundezas do Inferno.

— Miguel... — disse Satanás ao ver seu pior inimigo. “Quem é como Deus”. Outrora seu irmão, igual em poder, igual em beleza e sabedoria. Seu rosto andrógeno era como espelho para ele. Irmão gêmeo. Porém Miguel foi fraco o bastante para ficar e seguir aquele tirano em sua ditadura. Se Miguel tivesse se unido a ele naquele dia, tudo seria diferente, e ele não se veria obrigado a fazer o que fará agora.

— Basta demônio. Para os poços abissais tu serás banido--

— Não meu irmão. Não será assim. — e de súbito, Satanás ergueu sua espada e num sussurro inaudível proferiu palavras ocultas. Talvez tão ocultas quanto o significado da vida e a face de Deus. Porém naquele mesmo instante, uma onda de choque - procurando um termo mais fácil de compreender para nossas mentes materialistas - varreu todo o plano, se expandindo por todo o Universo de matéria, onde havia algum anjo para ser tocado por ela. E ao ser tocado, tal anjo foi corrompido pelo sangue.

Miguel sentiu tal reação. Primeiro o peso angustiante que lhe cobrira. O ardor quente e áspero que invadia seu peito. Seus olhos ardiam, suas mãos suavam e sua garganta se fechava. Via ao redor seus irmãos tendo as mesmas sensações, e os que eram feridos pelas armas dos demônios, sangravam feito homens, isso quando não eram feito em pedaços. Foi quando percebeu, e seus joelhos se dobraram diante de Satanás, que ele, de algum modo, transformou todos os anjos de Deus em mortais de carne e osso.

— Irmão... sinto muito que termine assim. — e Satanás o ergueu puxando pelos cabelos castanhos. Miguel não pode segurar o grito de dor. Com sua espada negra, Satanás lhe atravessou o peito. A espada de Miguel caiu cravada no chão. O sangue lhe escorria pela lâmina. Quem viu a cena chorou amargamente.

Um silêncio se fez quando o corpo de Miguel começou a cair. Com suas mentes ainda se ajustando à noções tão limitadas como gravidade e tempo, os presentes sentiram que sua queda levava uma eternidade. E, já que agora eram carne, não era mais ali seu lugar, e o corpo terminou de cair já em outro plano. Precisamente sob o capô de um carro na movimentada Jerusalém. o motorista mal teve chance de perceber o que acontecia, quando, ao erguer os olhos através do pára-brisa, viu uma verdadeira chuva de corpos. Verdade que alguns ainda vivos morriam com a queda, ou empalados pelas próprias espadas. Os que tiveram mais sorte, capazes de se pôr de pé, logo viram a chegada dos demônios para terminarem o embate.

E a luta se estendeu, agora em meio a homens confusos, que só viam seus maiores temores acontecerem. Bem aos pés do Monte Meggido - Har-Megiddo - Armagedom. Apesar daquela guerra se estender por todo o globo, onde houvesse terra firme, pois eram muitos os anjos-caídos e os demônios para confrontá-los.

E o próprio Satanás desceu em meio a guerra. Mas sua atenção estava para o corpo de Miguel. Junto dele, sua espada. O poder da Criação feita de metal. O diabo se aproximou dela, mas ao tentar tocá-la foi lançado longe. Certamente somente os anjos de Deus poderiam erguê-la. O que não era problema, pois não havia mais anjos. Apenas mortais. E então ele riu. E tão logo como veio, deixou o campo de batalha, voltando para os Céus, subindo cada vez mais, até chegar aos portões do décimo Céu, onde jazia o trono de Deus. Seu objetivo final.

Facilmente os portões se abriram ao seu comando. Lá, naquele mesmo plano de onde fora expulso da vista do Criador. Lá, onde seu plano de vingança começou. E para surpresa, o trono de Deus estava vazio. Caminhou até o tabernáculo. Daquele momento em diante, seria conhecido por ser verdadeiro nome novamente. Satanás não era mais, mas sim Kristos Lúcifer. E ele caminhou até chegar ao tabernáculo. E ninguém guardava o lugar, certamente transformados em mortais. Mas... será que... Lúcifer não saberia dizer, mas será que seu truque chegou ao próprio Senhor? Teria ele sido transformado em humano? Duvidava. Mas não se importava com isso agora. Só queria receber seu prêmio. E sentindo a glória da recompensa, se assentou no trono de Deus.

No mesmo momento, convocou seus partidários, para que também tomassem seus assentos diante dele. E a guerra teve pausa. Os anjos caídos que sobreviveram recebiam os olhares curiosos, por não algumas vezes furiosos, dos humanos. Eles questionavam: quem eram estes? São homens, de certo, muito mais altos e fortes que o normal, vestidos de modo estranho, como guerreiros antigos e, porque não dizer, bobos em seus trejeitos, como se não pertencessem a esse mundo.

Logo um pronunciamento na ONU à portas fechadas foi feito pelos representantes dessa nova sociedade. E quem falava se apresentou como Gabriel. Contou que sua gente eram os míticos anjos de quase todas as culturas. Provou isso falando em todas as línguas, aos sacerdotes cristãos, judeus e muçulmanos. Contou o que houve nos Céus. Isso causou comoção entre os homens de fé. O povo se afastaria das igrejas, teria anarquia. Mas seria difícil manter isso em segredo. Pediram que os anjos protegessem a humanidade. Gabriel consentiu. Em retribuição, lhe foram dadas terras na África para que os anjos habitassem.

Não demorou para isso causar confusão. A proteção prometida virou autoritarismo. As terras concedidas foram alvo de cobiça dos homens tirados de lá. Não era certo chamarem os gigantes de Anjos. “Nefilim” foram então chamados. “Os caídos” significava. Homens e Nefilins entraram em guerra. Por anos a guerra devastou a Terra. O Holocausto Nuclear foi eminente. Lúcifer via tudo com imenso prazer. Não queria interferir e somente ver como os anjos se tornavam. Tão idiotas como os homens. Mas viu como seria bom para ele se pudesse ter mais influência no mundo. Afinal, estar no trono tem que ter suas vantagens. Iria mostrar como era o jeito certo de governar. Um período de paz prometera. Para isso, enviou sete demônios para governarem sete nações. Nações que seriam o exemplo de paz e ordem. Onde homens e nefilins seriam irmãos.

Mas claro que isso significava um império de medo. Adoração ao novo senhor era cobrada. Sacrifícios de sangue exigidos. Sete potências se tornaram. Depois, sete impérios. Fora de seus muros, homens e nefilins foram forçados a virarem nômades. Poucas cidades livres se formaram. Duas tribos que ora se odiavam, ora se uniam contra os impérios.

Era 2028 depois de Cristo.

As memórias passam pela mente de Gabriel e ele é trazido de volta ao presente. Teria aquele jovem Noriel algum plano para por fim a essa débil situação?

— Diga sua ideia, Noriel. — por fim disse o lorde nefilim.

Noriel fez uma pausa, como se aproveitasse o momento de suspense, crendo que o que dirá causará o impacto que ele mesmo sentiu quando teve a ideia há alguns dias. E até hoje se surpreende como é tão fácil e simples tal plano. Como eles puderam se esquecer dele? A princípio, como puderam condenar-lhe a isto? Não importa. Noriel sabe que agora o que lhe revoltou por mais de dois séculos será reparado e louvado como a salvação do Universo. Então ele se volta para Gabriel e reúne palavras para explicar de maneira simples seu plano. E não achou modo mais simples de dizer do que da seguinte forma:

— Mataremos Lúcifer. — depois de um certo silêncio e um olhar de suprema dúvida, Gabriel riu de escárnio. Pelos últimos dezesseis anos era esse seu maior desejo.

— E como, exatamente, faremos isso?

— Com a Espada de Miguel! — disse Noriel sabendo que tinha o controle da situação e, à imagem dos mortais, saboreando esse momento.

— Não delire, garoto! A Espada de Miguel está protegida em uma câmara secreta atrás das muralhas do império de Israel, reino do próprio Belzebul. E fora que apenas um anjo pode tocá-la. E se me lembro, não há mais anjos por aqui. — Gabriel se levantou e dava as costas para Noriel quando este disse:

— É aí que se engana. — as palavras de Noriel pegaram Gabriel de surpresa, como ele queria. Eis o clímax de sua ideia: — Há um anjo... ou quase isso... que certamente não foi atingido por Satanás em seu trunfo. Um que foi esquecido há muitos séculos por cometer o pecado de amar. Um sentimento que há muito nós não sentimos mais.

E as palavras de Noriel fazem respeito aos poços do Inferno. Abismos de fogo e lava, saraiva e enxofre, onde uma única criatura lá padece por um crime há muito esquecido, menos por Noriel. Atado por correntes, ferido na carne e na alma, a figura esquelética tem sua mente profanada por sentimentos de vingança e ódio, também por arrependimento e amor. Uma mulher o norteia no caminho da esperança. Por ela ele está ali. A dor é insuportável e constante... tem sido assim nos últimos duzentos anos ou mais, ele não sabe mais ao certo. Um anjo que se fez homem para viver um grande amor. Um homem que teve sua amada e seu filho lhe tirado pela morte, que clamou para poder ser um anjo novamente. Um pecado que lhe custou o Inferno.

— Profaniel. — diz Noriel com tristeza na voz. — Meu amigo Profaniel. — Gabriel pensa na ideia com atenção. Seria uma possibilidade. Profaniel não é bem um anjo, mas uma criatura única, meio anjo, meio humano, teria poder para empunhar a Espada de Miguel? Senão, seria útil em outras missões. Enquanto pensava, Noriel diz, pondo uma pá de terra em suas próprias esperanças: — O problema é... Como tirá-lo do inferno?

Gabriel se põe pensativo, dando as costas para o outro e fitando o destruído e empoeirado altar. Apalpa sua barba pensando nesse tópico. Outrora seria fácil tirar Profaniel do Inferno. Bastava uma palavra com o Criador e ele mesmo, com as chaves do abismo, iria resgatá-lo. Mas agora não vê mais o Criador e as chaves não estão mais na sua mão. És mortal e fraco, como os homens que guiava. Mas, também como os homens, pode ser engenhoso e assim acha uma solução. Se volta para Noriel como um esboço de sorriso apontando no canto da boca dizendo:

— Isso até que pode ser fácil. — diz surpreendendo o nefilim, quando tira debaixo do manto um velho livro ostentando um pentagrama. Um livro de Bruxaria. — Noriel, sua idéia pode salvar o mundo!

* * *

A Seguir: Descendo ao Inferno.
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