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A faca foi erguida.
O garoto orou para todos os deuses, Ather principalmente.
Uma flecha zuniu e perfurou a cabeça da bruxa caolha que caiu desacordada. Todos os olhares se voltaram para uma garota que, agachada em um canto, já preparava novamente o arco.
- Maldita, maldita!
Ele aproveitou o momento para tentar se soltar, mas as amarras invisíveis não estavam nem um pouco mais frouxas. Viu que as duas bruxas já estavam empunhando facas e avançando contra a garota. Errou por pouco a segunda flecha e sacou uma espada. O espaço era pequeno e ela estava em desvantagem numérica, mas estava resistindo bem. Girou pela sala, se defendendo como podia.
A garota gritou de pavor quando bruxa caolha, que não estava morta, segurou-a pelo pé. Por instinto chutou até o rosto da bruxa afundar e ela parar de se mexer.
- NÃO SAIA DAQUI, MENINA, VOCÊ TEM QUE... - A luta acabou levando as bruxas e a garota para fora da sala, e ele ficou sozinho com o “cadáver”.
- Merda, merda, mer... – percebeu que o feitiço estava fraquejando e conseguiu se libertar.
A bruxa já começava a se mexer de novo, ele pegou a faca enferrujada no chão e enfiou na cabeça dela. Sentiu que o fio da vida não queria se romper.
- Que o que restou dessa alma corrompida siga em frente. – disse em uma língua perdida.
O véu da realidade se dobrou e com ele o espaço. A noção de tempo não parecia existir, a gravidade sumiu. Espíritos amaldiçoados avançaram contra o fio da vida da bruxa e este finalmente se rompeu. O garoto não viu o que aconteceu depois, nem ele era capaz de enxergar além do mundo dos vivos. Uma energia poderosa percorreu a sala e o véu se re-arrumou.
- Faltam duas.
Pegou sua mochila, jogada em um canto, saiu apressado dali e viu que estava em um grande salão, ele devia ter sido muito luxuoso, mas agora estava destruído pelo tempo e pela ação das bruxas. Mais à frente a menina lutava contra a mais alta delas.
A irmã corcunda estava ajoelhada em um canto, preparando uma maldição, e pela aura maligna que empesteava o lugar o garoto teve certeza que ela já estava quase pronta.
Achou a adaga colocada em sua mochila e soltou-a, mas ela não caiu, o ar zuniu a sua volta e ela seguiu em alta velocidade, não feriu muito a bruxa, mas atrapalhou a maldição. Aquela adaga era especial, ele mesmo passara muito tempo enfeitiçando-a.
Os ferimentos do seu braço ardiam e estavam sangrando um pouco.
A irmã corcunda se levantou e o olhou com uma cara de desprezo, não tinha mais aquela expressão abobalhada. Quando ele percebeu, ela já estava ao seu lado. A faca dela raspou em seu rosto.
- Você a matou... VOCÊ MATOU MINHA IRMÃ... MALDITO!!
Dessa vez a faca o acertou, fazendo um corte profundo no seu ombro. Desviou do terceiro golpe. Se arrependendo por não ter pegado a faca da irmã caolha, ele chutou-a que caiu para trás. Na mesma velocidade que caiu ela já estava de pé novamente
O garoto percebeu uma oportunidade.
Um corte na perna da bruxa. Sua magia podia impedir que ela morresse, mas não evitava a dor.
Jogou-se no chão e, antes que ela pudesse atacar, cravou suas mãos na perna machucada. Ela derrubou a faca e caiu, rolando e sofrendo. O garoto foi rápido, pegou a adaga e enfiou no peito dela.
- Siga em frente, criatura impura.
Sentiu o véu se dobrar e todas as suas consequências.
- Cuidado!! – gritou a garota quando a bruxa mais alta se virou e correu na direção dele.
Ele ergueu a faca defensivamente, mas ela passou direto, recitando um encantamento e sumindo em meio aos símbolos vermelhos da sala em que estavam antes.
- Onde ela está? – perguntou a garota sem abaixar a guarda.
- Ela foi embora... Pelo que eu peguei do feitiço pra algum lugar longe.
Eles se encararam por alguns instantes.
- Temos que cuidar desses ferimentos – ele disse ao ver os cortes nela – antes que infeccionem.
- Você também não tá muito bem.
- Estaria ainda pior se você não tivesse chegado – disse com um sorriso cansado.
- É...
O garoto tirou algumas ervas e ungüentos de sua mochila e respeitosamente fez curativos na garota, que não fez resistência. Ele repetiu o processo em si mesmo e ela o ajudou. Foi fácil, as armas das bruxas não estavam envenenadas, mas ele percebeu que sua pele ficaria marcada para sempre com aquele símbolo estranho.
Por fim ele fez algumas preces, mas não usou seus dons para curar, estava cansado e não eram ferimentos tão graves.
- Sou Leif. – percebeu que não tinha se apresentado e que esse era um bom momento – das terras de Kalier
- Julie, das tribos nômades... Mas que importância essas coisas tem hoje em dia, né?
- É... As terras de Kalier não existem mais, de qualquer forma.
O silêncio permaneceu por algum tempo, enquanto cada um remoia suas perdas e tristezas que com certeza não eram poucas.
- Você ainda ora para os deuses – ela disse sem nenhuma emoção.
- A maioria das pessoas já estaria perguntando como eu posso reverenciar os deuses que nos abandonaram nesse mundo horrível.
- Acho que eu tava pensando nisso.
- As pessoas não concordam comigo, mas eu tenho certeza de que os deuses não iriam embora por vontade própria, não alguns deles.
- Quem sabe? – Julie deu de ombros sem parecer realmente convencida – Vamos ver se sobrou alguma comida aqui.
Enquanto ela caminhava para a porta mais próxima, ele foi pegar sua adaga encantada. Guardou na bainha e quando virou, viu que ela estava parada, realmente impressionada com alguma coisa.
- Nossa...
Leif se juntou a ela, enquanto coisas que ele não sabia há um segundo surgiam na sua mente, isso era parte do seu dom, parte da benção de Ather.
A maior biblioteca que eles já tinham visto estava ali. Metros e metros de estantes, que iam do chão ao teto, repletas de livros, pergaminhos, manuscritos e até algumas pedras esculpidas. Conhecimentos reunidos através dos séculos por todo o mundo.
- Como isso pode tá tão inteiro com aquelas bruxas morando aqui? – a garota fez a pergunta mesmo sem realmente acreditar que ia ter uma reposta.
- A própria Ather participou dos encantos de proteção. – ele refletiu por um momento - Você sente a aura de magia?
- Ela tem um cheiro amadeirado? – ela ficou vermelha e o garoto percebeu que ela se sentiu boba por ter perguntado aquilo.
- De fora do castelo eu não tinha percebido, mas a aura daqui é muito forte e nesse caso as pessoas podem sentir, só que cada uma de um jeito diferente. Não me admiraria se você a percebesse como um cheiro amadeirado.
- Hum...
Ele puxou uma espécie de alavanca ao lado da porta, e o barulho de engrenagens que estavam paradas há muito tempo foi ouvido. O cheiro de algum tipo de óleo queimando encheu o ar, e de uma por uma, várias lâmpadas se acenderam.
Separaram-se olhando tudo ao seu redor, ainda impressionados com tudo aquilo. Desde o começo de sua busca Leif imaginava que aquilo seria grandioso, afinal aquilo era um templo de Ather, mas não pensava que seria tanto.
- Leif, venha ver isso.
- O que fo... – ele não conseguiu terminar depois de ver o quadro que retratava três mulheres pendurado na parede, sua mente se encheu de novas informações – Eu matei duas das grandes sacerdotisas de Ather! Logo Dela, se fosse de algum outro deus também teria sido horrível, mas de Ather...
- Calado – ela falava sério – você não matou duas sacerdotisas, você matou duas bruxas. E se você não tivesse feito isso, nós dois estaríamos mortos agora. Então esqueça isso e vamos ver se agente descobre alguma coisa aqui.
Ele ainda pensou em contestar, mas o olhar severo de Julie foi suficiente para fazê-lo desistir, então tentou esquecer seu sentimento de sua culpa.
Havia um tipo de bancada logo abaixo do lugar onde o quadro estava pendurado, um livro de capa de couro estava em cima dela, junto com uma pena, um tinteiro e um lápis grafite. Ao tocá-lo o garoto entendeu que aquilo era algum tipo de diário mantido pelas sacerdotisas, abriu na última página e começou a ler em voz alta.
- Mais uma vez tive um daqueles sonhos estranhos, e mais uma vez minhas irmãs sonharam a mesma coisa, seguindo as antigas tradições do oráculo todos os nossos sonhos foram interpretados da mesma forma: Ather, a senhora do conhecimento e da magia, exilada no Palácio de Nimuan junto com os outros deuses.
Agora temos certeza de que não é somente uma coincidência, é algum tipo de sinal, de mensagem. Precisamos ajudar, mas as pessoas não vêm mais aqui, não temos como espalhar essa mensagem.
Esta noite os céus se mostram próprios para magia poderosa. Temos medo, é verdade, só que não temos outra escolha.
Tentaremos quebrar nossos votos...
- Não precisa se envergonhar.
-Tá bom... O que é esse Palácio de Nimuan?
- É onde os deuses viveram antes de nos criarem, é um tipo de castelo encantado, ou algo assim.
- Então ninguém nem pensou em procurar eles lá? É tão óbvio...
- Na verdade, não... Eles viveram lá há muitos séculos e poucas pessoas sabem disso, ele não é citado na história e os que já ouviram falar sobre ele acham que é só algum tipo de mito.
- Hum... E por que elas tinham medo de quebrar esses votos?
- Não são votos comuns, não são apenas palavras. São compromissos firmados com a própria Ather através de magia muito poderosa. E uma das coisas que elas prometeram foi ficar aqui no templo para sempre. Parece que elas conseguiram quebrar os votos, mas aquilo deve ter sido poderoso de mais para elas controlarem e acabaram se corrompendo.
- É, acho que é tudo.
Percebendo que Julie realmente não tinha mais nada para perguntar, ele começou a percorrer as estantes, seus dedos tocando os livros e levando as informações direto para o seu cérebro.
- É uma pena ter que deixar tudo isso para trás. Se eu pudesse passaria anos estudando aqui, mas temos que partir. – disse quando achou o livro que queria. Colocou as duas mãos sobre a capa e se concentrou para gravar mentalmente alguns mapas.
- Temos!?
- Eu pensei que depois do que passamos nós formávamos um tipo de dupla.
- Você não acha que tá se precipitando demais não? Nem sei quem você é, não sei se posso confiar em você.
- Precipitado? Talvez, mas eu acho que nós não nos unimos à toa. Você não sabe quem eu sou, não sabe se pode confiar em mim? Eu também não sei quem você é, se posso confiar em você. Quites.
- Eu ainda não sei para onde você quer me levar.
- Meu objetivo – nesse momento seu rosto se iluminou com um grande sorriso – é trazer os deuses de volta, Julie.
+ comentários + 5 comentários
Muito boa a sua história! A cena de batalha das bruxas com os garotos foram demais (talvez um pouco confuso, mas perfeito!). Esperando pelo próximo!
Curti muito esse segundo caps. Parabéns leleco, a atmosfera de magia ta muito, mas muito bacana!
Gostei mesmo!
Não achei nada confuso, achei q o texto tem uma dinâmica equivalente para a história.
Bacana mesmo.
Parabéns outra vez!
“O véu da realidade se dobrou e com ele o espaço. A noção de tempo não parecia existir, a gravidade sumiu. Espíritos amaldiçoados avançaram contra o fio da vida da bruxa e este finalmente se rompeu. O garoto não viu o que aconteceu depois, nem ele era capaz de enxergar além do mundo dos vivos. Uma energia poderosa percorreu a sala e o véu se re-arrumou.”
Esse trecho foi soberbo cara!
O texto inteiro, aliás, está fantástico... Não achei a luta confusa, mas muito bem “coreografada” e os personagens estão muito bem desenvolvidos, vide a conversa perto do fim... Adorei o lance da Julie ser bem desconfiada quanto á vontade do Leif em formar uma dupla...
Excelente é pouco!
Meus parabéns, um abração e até mais!!
:o eu adorei... essa serie está a cada passo melhor!
Quero mesmo ver como vai trabalhar isso mais p/ frente... curiosa d+!
Que bom que você arranjou um tempinho pra ler, chefinha! Brigadão. :D
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