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Ultimate UNF: Hera Venenosa #6


Sonhos. Medos. E a perda, que parece ser uma sombra nessa vida.




Hera Venenosa #6

Heterotrofia

Por Pedro Caldeira



Universidade de Seattle, meses atrás

O medo e a vergonha tiveram que ser superados.

Foram aproximadamente duas semanas de reclusão. De reclusão em um lugar qualquer. Longe das instalações do centro de ensino. Longe de pessoas conhecidas.

Durante o dia, aproveitando a claridade solar, Pamela entranhava-se pelo parque, meio as árvores.

Durante a noite, hospedava-se num motel barato de beira de estrada.

Durante o dia, pensava na mãe. Tenteava buscar conforto e coragem para decidir o próprio destino. Escondia-se dos visitantes, crianças e suas babás, casais enamorados e da segurança. Admirava as flores, ia praticando o que aprendeu na Universidade e o que aprendeu com a mãe. Confirmava que a vida se resumia mesmo a nascer, crescer, reproduzir... morrer. O colorido da vegetação era deslumbrante. Tão encantador quanto os ruídos dos animais que ali viviam.

Durante a noite, sozinha, se lembrava o pai. Via que seu então melhor amigo estava se tornando igual ao Sr. Isley. Deitada na cama fétida olhava para o teto, marcado por mofo e infiltração. Os insetos corriam pelo carpete úmido e na TV nada lhe interessava. Apertando o travesseiro ela lembrava do ato de Tom. E se reprimia. Porque, apesar de tamanho desrespeito, ela sentiu prazer. Isso era uma coisa que pudor algum poderia lhe tirar. Isso a massacrava por dentro. Simplesmente porque durante a noite ela aumentava uma etapa do se resumia a vida: nascer, crescer, reproduzir, ter prazer e morrer.

Até que sonhou com a mãe cuidando do jardim e lhe explicando sobre como encarar a vida.

Pamela tentava adormecer no jardim. Sua mãe lhe falou:

- Não adianta lutar contra isso, Pam. Fique sabendo que o sono é dividido em cinco fases: quatro delas de sono não-REM e uma de sono REM. E nesse período de sono REM é quando costumamos sonhar. Em outras palavras? Daqui a uma hora você estará insensível aos estímulos externos, e quando chegar na segunda fase, vai sentir seu corpo flutuando.
- Mas eu estou muito relaxada. Meus pensamentos estão vagos. Estou adormecendo…
- Se você viver o seu maior pesadelo, vai enfrentar seus medos. No começo, tentará esconder o seu corpo. Sentirá vergonha. E sentirá angústia.
- Estou com medo, mamãe. As pessoas continuam me olhando, apontando. Não tenho como sair daqui. Continuo angustiada. Mas estou me sentindo… ansiosa.

Quando o sol ameaçou a despontar no horizonte, ela se levantou, tomou um banho rápido e corre de volta à Universidade. Sem pensar. Apenas aproveitando aquele momento inspirador, com o peito cheio de incentivo.

No meio do caminho, o céu desabou.

A coragem parecia se esvair com as gotas da chuva que a encharcavam as roupas, corpo, cabelos. Óculos.

Quando se deparou no extenso corredor, agora era o chão que se abria.

Praticamente todos os estudantes da Universidade estavam enclausurados naquele ambiente seco e abafado.

Todos olharam àquela moca ensopada entrando.

Com suas roupas pesadas, destoantes. Os tênis coloridos fazendo um irritante ruído de borracha e a jaqueta de camurça bege. Cabelos sem vida e as lentes embaçadas.

Suas pernas tremiam tanto quanto nos dias em que encontrava o pai, bêbado. Seus ossos trincavam tanto quanto no dia que viu a mãe estirada no chão, morta. O frio lhe cortava os pelos.

Expirou. Seus olhos caíram. A cabeça voltou ao seu estado e sempre: baixa.

Com passos rápidos, ela enfrentava a multidão. Olhando para o piso, criava uma linha imaginaria, aproveitando o rejunte entre as placas de mármore.

- Pamela! Vai ter uma festinha lá em casa hoje! Você vem? Podemos fazer um sexo gostoso também!

Gargalhadas pelo corredor.

- Ô estanha! Você chupa bem mesmo? Tão dizendo por aí que sua boca é cheia de espinhos. É verdade? Vamos ali no banheiro pra tirar a prova?
- Pamela, sua puta!
- Vagabunda!
- Tom devia ter arrombado seu cu também! Pra você deixar de ser essa falsa santa!
- Ele devia ter feito fila com os convidados, para que todo mundo pudesse te comer!

Antes que a lágrima escorresse, ela usou o velho truque da ilusão.

Do sonho.

As ofensas tornaram-se cantos de pássaros.

As pessoas, árvores.

O mármore, grama verde e cheirosa.

Assim sorriu e, na sua mente, ela saltitava feliz. O céu estava limpo, de um azul tão claro... com nuvens em forma de guloseimas.

Até o momento em que, por entre troncos fortes, surgiu Tom.

Como uma cascata, o sonho desfez-se, caindo em cintilantes estrelinhas.

Pamela ergueu a cabeça e o olhou.

Tom apertou o pênis por cima da calca jeans e sorriu. O outro braço era daquele jeito mesmo: apoiado na parede, para revelar os músculos.

Ela não fez expressão alguma. Nem sentiu nada. Na sua cabeça, nem houve flashback, tampouco futuro vingativo.

A namorada de Tom e os outros que participaram da aposta também surgiram.

Apontando. Xingando. Gargalhando.

Pamela cedeu.

Correu.

Correu, se esbarrou em alunos mais ousados, que se esfregavam nela, ou a apalpavam.

Se desvencilhou e fugiu.

Ela não viu nem ouviu quando um homem gritou no corretor. Firmemente. A multidão se dissipou.

Trancada no banheiro, era possível escutar os soluços de longe.

Sentada na latrina, ignorava as frases, piadas sacanas e telefones rabiscados na porta.

Novamente ela pensou em pular etapas do ciclo da vida.

Só que morrer não estava nos planos que a própria mãe lhe contou em sonho.

Não pode piorar – pensava, enquanto limpava o rosto usando papel higiênico – Não pode!

Ninguém que estudava naquela Universidade havia passado pelo que Pamela enfrentou.

Ninguém.

E por isso eles não tinham o direito, ou moral, para lhe machucarem.

Abriu ferozmente a porta do banheiro e foi para a sala de aula.

Encarou tudo e todos até o fim.

Até a fatídica noite, horas depois.

Até entrar no dormitório e não ter voz nem impulsos físico-nervosos.

Mariah, sua única amiga, se enforcara usando lençóis. Seu corpo jazia.

Era dois corpos estáticos, na verdade.

Alguns alunos passaram pelo dormitório e viram a cena.

Novamente o alvoroço. A algazarra.

Acusações.

Em poucos minutos era como se todas as pessoas do mundo se espremessem ali.

Curiosos.

Sedentos pela tragédia.

Ainda em choque, Pamela era amparada por policiais e professores.

Nada fazia além de soluçar e chorar.

As autoridades buscavam respostas, seguindo o protocolo e, inclusive, dando ouvidos à gritaria: Pamela era a assassina.

Como esperado, depois das investigações, da retirada do corpo e com a volta da calmaria, Pamela foi questionada sobre uma possível troca de quartos, para não conviver com o fantasma da saudade. Ou de qualquer outro sentimento.

Com o pouco tempo que lhe permitiram para juntar os pertences, ela sentou na cama onde, por diversas vezes, conversou com Mariah sobre sonhos e medos. E ansiedade.

Cada cantinho tinha uma lembrança.

O estômago ainda estava embrulhado.

Ao pegar o cacto viu, no fundo do vaso, preso, um papel dobrado em vários pedaços.

Lentamente pôs-se a virar cada lado da folha esbranquiçada, tentando afastar os pensamentos.

Perda de tempo.

Enfim, descobriu a carta.

A cada linha desvendada, seus olhos mareados seguiam para o período seguinte.

Aquele papel poderia ser sua defesa contra uma – improvável e impossível – acusação.

Era uma carta de despedida; de justificativa.

Nela, Mariah revelava que muito sofria por se sentir culpada pelo que Tom lhe havia feito na noite da festa. Uma noite mágica se fechou num gris distante. Se sentia responsável, afinal, graças a ela Pamela transformou-se noutra mulher. Ao menos naquela noite.

- Amiga… isso aconteceria de qualquer jeito…

Mariah não sabia da aposta, por isso seu coração pesava como uma âncora no fundo do mar do desgosto.

Com a carta apertada entre o busto, foi despertada por alguém à porta.

Sem olhar, respondeu que já estava saindo.

- Calma, Pamela. Quero conversar com você.

Era seu professor de bioquímica, Dr. Race.

Em poucos minutos caminhavam pelas instalações.

- Sinto muito por Mariah.
- Obrigada.
- E sinto também pelo que Tom e sua gente fizeram com você.

Uma parada tensa.

- O senhor sabe?
- Quem não teve conhecimento desse episódio, Pamela?
- Meu Deus, que vergonha!

Ameaçou correr, mas foi puxada de volta por uma mão.

- Eu quero te ajudar. Antes que pergunte, não vou pedir nada em troca. Conheço sua história, sei que é a sua – admirável – mãe. Quero oferecer um – digamos – estágio.
- Mas eu…
- Pamela, você é um talento. Uma ótima aluna. Notas altas, interessada. Um amigo meu está desenvolvendo um projeto na Amazônia e acho que você deveria lhe dar assistência.
- Amazônia! – olhos brilhando – Não sei se devo…
- Você precisa mudar de ambiente. Isso aqui não é mais para você. Você é mais além do que a Universidade de Seattle pode oferecer.
- Se eu for não poderei me formar.
- Deixe de medo! Sonhe! E aí é que você se engana, Pamela. Essa temporada com meu amigo lhe dará créditos suficientes para que você conclua o curso e receba o seu diploma.
- Eu… queria… pensar…
- Desculpa, mas não há tempo. Você já está com suas coisas arrumadas. É um sinal. E pra complicar mais, o Dr. Woodrue embarca amanha à tarde para América do Sul.

E aí as outras palavras da mãe invadiram seus pensamentos.

“Ansiedade. Sentimento normal, imprescindível para a vida cotidiana. Até uma certa intensidade ela é útil, pois permite que a pessoa possa levar adiante seus projetos e ambições, impulsionando-o para frente. A ansiedade se caracteriza por manifestações psíquicas e físicas. As psíquicas são difíceis de descrever e variam de pessoa para pessoa. Ela se sente inquieta internamente, apreensiva em relação a algo vago, com desconforto, desprazer, nervosismo, irritação e dificuldade de concentração. As manifestações físicas incluem inquietação motora, falta de ar, boca seca, sudorese, mal-estar abdominal, aperto no coração, tensão muscular, dores e dificuldade para engolir. A ansiedade pode se manifestar de modo constante ou crises abruptas. Essas crises podem estar relacionadas a alguma situação específica ou ocorrem de modo espontâneo. Os principais transtornos ansiosos são a ansiedade generalizada, transtorno de pânico e… medo.”

- Eu estou com medo. Mas estou ansiosa porque não consigo sair daqui. Tenho que sair daqui. AGORA!
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+ comentários + 7 comentários

4 de junho de 2010 às 09:59

eu nem preciso repetir o agradecimento e dizer que Hera é uma das minhas preciosidades. construção de personagem bem intensa. eu acho que os fins justificam os meios, e que o começo justifica tudo, por isso era necessário explicar o motivo de hera ser dessa forma. mês que vem vem o ápice. digo, o clímax. digo, a fotosíntede.

7 de junho de 2010 às 12:00

putz grila

mesmo com pouca movimentação, esse capítulo foi o mais tenso de todos até agora. O medo dela, o modo que a receberam na universidade, o suicídio da amiga... tudo isso foi bastante pesado....

tu é FODA

parabéns.

10 de junho de 2010 às 15:21

mwhahaha! valeu, morete. em breve tem mais!!!

20 de agosto de 2010 às 18:25

Parabéns Caldeira! E faz o que o Nery falou, manda esse roteiro para a DC. A vida dela está muito bem descrita. Parabéns, mais uma vez!

21 de agosto de 2010 às 17:42

mwhaha! valeu... quem sabe traduzo e mando, né? nunca se sabe...

22 de agosto de 2010 às 00:15

Eita... muito bom esse capítulo.... e...DR. Woodrue?...Hmmmm.... a coisa agora vai mesmo caminhar...

22 de agosto de 2010 às 05:59

vai caminhar e o bicho vai pegar, mwhaha!

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