Revolt segue o rastro de sua irmã desaparecida até a casa de Jezebel, a cafetina que trabalha para Crinimal D. A fim de descobrir o paradeiro da irmã, o motoqueiro precisa enfrentar o leão de chácara do lugar, Sexta-Feira 13, uma tarefa um tanto difícil.
Capítulo 3: “A Casa de Jezebel”.
Por: Anderson Oliveira
Muitos nomes poderiam se atribuídos a esse lugar. Um lugar que já foi descrito por numerosos poetas com grande luxo e beleza, mas este em particular na realidade não passa de um sobrado comum. Por fora ninguém diria o que acontece lá dentro. Claro que os boatos correm e, principalmente entre os homens, não é nenhum segredo o principal atrativo da casa.
As mulheres não são nem muito belas, nem muito feias. Extremamente vulgares, isso sim. No ambiente comum da casa, em meio à música, álcool e drogas, as mulheres que lá se ocupam com os homens estão nesta vida por diversos motivos. Mas todas por livre e espontânea vontade. Sorte que não é de todas. Há aquelas que caem numa armadilha.
No porão desta casa se esconde uma face de dor. Apesar de decorado e iluminado, com certo conforto, o porão é chamado por aqueles que o guardam de Tumbeiro, em alusão aos navios negreiros da época da escravidão. Pois aqui são cativas escravas. Negras, brancas, não importa. O único quesito é serem belas o bastante para satisfazerem o desejo de seus futuros compradores.
Estas já estão vendidas. Elas não sabem disso. Pensam estar alojadas numa filial de uma grande agência de modelos. Pensam que amanhã pegarão um avião para Milão, Paris ou Londres. Realmente amanhã pegarão um avião, mas os destinos não serão as passarelas. Dez garotas... Dez garotas vendidas.
Tiros. Gritos. Muita confusão.
Um caos que assusta as garotas. Há algo errado lá em cima. Os passos no andar de cima são frenéticos. Os gritos das mulheres e dos homens são de medo. As dez garotas no tumbeiro se atemorizam ainda mais por não saberem o que está havendo. Então a porta se abre.
É ela. A mulher gentil com um sorriso materno. A senhora de uns sessenta anos que comanda a agência. Agora seu rosto está coberto por maquiagem carregada. Agora seus olhos expressam um medo infantil. De frente a porta recém aberta ela permanece por um instante completamente imóvel.
— Dona Jezebel...? — balbucia uma das jovens com estranheza nos seus belos olhos castanhos.
A resposta de Jezebel é um passo a frente. Então as dez garotas podem ver uma figura que estava oculta na escuridão. Ele ameaça Jezebel com uma pistola. Seu rosto é oculto nas sombras. A roupa cinza e preta parece estranha aos olhos das garotas que ficam imóveis ao perceberem a arma.
Porém o susto é maior ao vislumbrarem sua máscara.
“Invadir pelos fundos, derrubar os poucos seguranças que bebiam cachaça na cozinha... isso foi fácil. Um passo errado e caí na sala... gritos das mulheres assustadas... lutar contra uns metidos a valente foi inevitável. Mas foi bom, pois assim ela apareceu. A cafetina desgraçada que é a única que pode me dizer onde está Marisa. Por isso ainda não estourei sua cara... vontade não me falta.
Ela me trouxe aqui. O cativeiro onde as garotas corrompidas esperam até serem despachadas. Enquanto estas dez garotas se assustam com a minha presença, corro meus olhos em busca do rosto que tanto procuro... mas Marisa não está mais aqui.”
— Onde estão as outras?! — Revolt pergunta com a voz forte e o cano da arma pressionado contra as costas de Jezebel.
— M-mas... que outras?! — diz a mulher, sem expressar medo, apenas indignação.
— As que vieram aqui... na última semana?!
— Já se foram... nunca ficam aqui mais de uma noite!
— Pra onde foram?! — Revolt está visivelmente irritado.
— Depende... Vão para muitos lugares... — Jezebel apesar de estar sendo ameaçada não expressa medo.
— Que lugares?! — a voz de Revolt se torna mais forte a cada pergunta.
— Tóquio... foram muitas para Tóquio... Algumas para Amsterdã... A maioria foi para Roma. Mas sempre uma ou duas são escolhidas...
— Escolhidas?!
— D as escolhe para seu harém...
“Criminal D... desgraçado! Porém se Marisa estiver com ele fica mais fácil resgatá-la. Mas... Como? Essa vadia deve ter um registro... algo onde anota para onde foram as garotas... como se fossem mercadorias a serem vendidas... Ele deve ter algo assim... Mas... essas garotas que estão aqui... não posso deixá-las sofrer o mesmo destino...”
Revolt agressivamente joga Jezebel para dentro da sala. Ela cai entre as garotas que permanecem gélidas de medo.
— Vocês... venham comigo. — diz Revolt. Porém as garotas hesitam. Revolt percebe que elas ainda não tomaram noção do que está se passando. — Aqui não existe nenhuma agência de modelos... Isso é um bordel... Vocês seriam mandadas para outros países para se prostituírem.
As palavras daquele misterioso mascarado assustaram ainda mais as garotas. Como crer nesse sujeito? Como crer que um sonho tão esperado na verdade não passa de uma grande desgraça? As garotas olham para Jezebel, ainda no chão, procurando alguma resposta. A cafetina nada diz, simplesmente abaixa os olhos de vergonha. Para as garotas é a confirmação dos fatos.
Uma a uma deixam o tumbeiro, sobem pelas escadas até o andar superior, onde prostitutas chorosas estão sentadas no chão frio enquanto os poucos homens no recinto esboçam uma intenção de reação, mas ao verem Revolt subir atrás das garotas eles rapidamente “murcham as orelhas”. Antes, porém, ele trancou Jezebel no porão.
Revolt as acompanha até a porta da rua, de onde as garotas saem chocadas e ao mesmo tempo aliviadas. Ele volta para dentro enquanto percebe que os homens e as mulheres fogem pela mesma porta. Revolt agora só pensa em acertar contas com Jezebel.
De volta ao porão, ele se tranca com ela lá dentro.
— Você tem um registro das garotas que saem daqui, certo? — Revolt pergunta puxando uma cadeira onde se senta. A resposta de Jezebel é apenas um olhar vingativo. — Pois bem... não me custa nada revirar esse lugar em busca desse registro. Mas se você me entregar... será melhor pra nós dois.
Novamente não há resposta. A cafetina apenas se levanta e limpa seu vestido vermelho com as mãos. Revolt cruza os braços. Perdura um longo silêncio até que passos firmes são ouvidos no andar de cima. Tal ruído faz Jezebel sorrir. E isso só pode representar problemas para Revolt.
— Chega de palhaçada... — Ele se levanta e a pega pelo pescoço. — Me dê esse registro... senão--
— Hahahahha!! — Jezebel solta uma gargalhada que Revolt até então só havia ouvindo em filmes de terror classe B.
— Tá... Não queria bater em mulheres... Ainda mais... anciãs...! — com essa provocação Revolt joga Jezebel contra a parede da esquerda. Ela cai sobre uma mesa com jarros de flores.
— Você vai se arrepender... — diz Jezebel limpando o fio de sangue que escorre por sua boca. Antes de Revolt ordenar os pensamentos para responder, um forte golpe faz com que a porta se abra. Ao se virar Revolt vê um homem forte, de mais de dois metros de altura, negro, com uma marreta na mão. Revolt engole seco. — Cuide dele... Sexta-Feira 13!
Ao comando de Jezebel, o homem chamado de Sexta-Feira 13 (certamente por portar uma marreta do mesmo nome ou qualquer outro motivo mais escuso), investe contra Revolt que mal pode reagir. Sexta-Feira lhe acerta uma marretada no peito que faz Revolt recuar bem um metro e meio. Em seguida ele o puxa pela perna e sobe as escadas o arrastando. No andar superior, ainda o segurando pelo pé, Sexta-Feira o arremessa contra uma coluna da casa. Revolt cai inerte.
— Fracote... — diz Sexta-Feira com uma voz firme condizente com sua aparência. Em seguida Jezebel surge atrás dele:
— Livre-se do lixo, Sexta-Feira...
— Tá. — com essa resposta ele pega Revolt com uma única mão e o joga nos ombros. Sexta-Feira se dirige até a saída dos fundos, sai no quintal, de onde tem um acesso para o córrego Tijuco Preto. Sexta-Feira anda pelo matagal até a margem do córrego e lança Revolt nas águas poluídas. — Esse não dá mais trabalho...
Sexta-Feira volta satisfeito para a casa. Passando pela cozinha apanha uma banana. Na sala se senta no sofá, deixa sua marreta do seu lado e come sua banana. Jezebel observa a desarrumação do lugar enquanto pressiona um pedaço de papel na sua boca. Então ela se volta para Sexta-Feira 13 e lhe diz:
— O que fez com ele?
— Joguei no rio...
— Seu imbecil! Não sabia que D ofereceu uma recompensa por esse motoqueiro?
— Não.
—Não importa... Agora... vá atrás das vagabundas que fugiram...
— Depois.
— Eu estou mandando você--
— Depois!
— Certo... irei me recolher... — Jezebel sobe para o andar de cima. Enquanto sobe diz em voz baixa: — Porco infeliz...
— Vaca. — diz Sexta-Feira também em voz baixa. Em seguida ele vai até outro cômodo da casa, onde há uma televisão e um aparelho de DVD, assim como vários DVDs numa estante. Ele escolhe um deles com um largo sorriso e o coloca no aparelho. Em seguida se senta numa poltrona velha de frente para a TV. Quando o filme começa ele diz: — Oba... Chaves!
O gigantesco homem se diverte com o programa humorístico como se fosse uma criança enquanto a madrugada avança. Lá fora, as nuvens encobrem o luar e as estrelas. Sinal de chuva, o que é comum na transição entre verão e outono. Os trovões longínquos são o único ruído nesta noite.
E tão silencioso quanto a boca da noite, um vulto entra pela porta dos fundos. Seus pés, embebidos num lodo fétido, deixam um rastro imundo por onde passa. O intruso ganha a sala, agora escura e sem ninguém, então ouve risos vindos de outro cômodo. E, de posse daquela marreta, ele vai até lá:
— O quê?! — são as únicas palavras de Sexta-Feira 13 antes de ser atingido por sua própria marreta. O golpe o faz cair da poltrona, mas a dor é ínfima. — Mas... Eu não me livrei de você?! — ele pergunta ao seu agressor.
— Ninguém tem paciência comigo! — responde Revolt, após dar uma rápida olhada na televisão. Aconteceu que ao ser jogado no rio teve sorte de ficar preso nos entulhos que poluem as águas, e ao recobrar a consciência pôde voltar para a casa de Jezebel.
Mas as explicações são o menor dos problemas de Sexta-Feira. Imediatamente Revolt o golpeia de novo. E de novo. E de novo... enquanto o criminoso apenas consegue recuar. Seu sangue escorre por seu nariz e boca enquanto seus braços inutilmente tentam deter Revolt.
— P-porra!... S-seu... filadaputa! — balbucia Sexta-Feira 13. Revolt nada diz enquanto prossegue com os golpes na esperança de fazer o homem tombar, para então, ir até Jezebel e conseguir de uma vez por todas a localização de Marisa. E enquanto nisso pensa, se descuida por um segundo... Apenas um segundo... e Sexta-Feira lhe atinge uma rasteira.
Revolt vai ao chão com a marreta nas mãos, porém o peso do objeto se torna incontrolável e a marreta cai sobre a televisão que explode no rosto de Sexta-Feira. Distração perfeita para Revolt sacar uma arma que guardou no bolso interno de seu traje. Com um tiro atingiu as partes baixas de Sexta-Feira 13.
Fato que acabaria com sua função ali. Pois, segundo o que Revolt apurou, Sexta-Feira tinha o trabalho de violentar as garotas que eventualmente descobrissem a verdade sobre os negócios escusos de Jezebel e depois matá-las, caso ainda assim elas se recusassem a “trabalhar”. Revolt sorriu por baixo da máscara.
Enquanto faíscas resultantes da explosão da TV ainda se espalhavam pelo cômodo, Revolt se levantou e saiu dali.
“Se Jezebel ainda estiver na casa, ela só pode estar num quarto particular, no andar superior. Claro! E lá ela deve guardar os registros das garotas! Somente lá está o paradeiro de Marisa! Rapidamente subo as escadas... o tempo é curto... Não faço ideia de quanto tempo fiquei desacordado... Meu corpo ainda dói...”
No andar de cima apenas um corredor com três portas. Duas delas abertas, provavelmente o lugar onde as prostitutas recebem os homens. O quarto fechado só pode ser onde Jezebel fica.
Revolt chuta a porta. Jezebel dormia como uma pedra, sobre o efeito de remédios, claro. Mas com o estrondo do arrombamento da porta ela acorda. Mesmo grogue Jezebel ainda consegue tirar um revólver debaixo do travesseiro. Revolt pouco se importa. Ele se aproxima e a puxa pelos cabelos:
— Eu quero os registros... — enquanto fala ele tira a arma de Jezebel esmagando os dedos franzinos da mulher. Depois enfia a arma na boca da mesma: — Só os registros.
Com um medo descomunal no olhar, medo que antes não demonstrava, Jezebel aponta para um laptop que está sobre um guarda-roupa. Revolt vai até o objeto, ainda apontando a arma para Jezebel. Estica um pouco o braço e alcança o laptop.
— Aqui está tudo? — ele pergunta.
— Todas... todas as mulheres... que passaram por aqui... desde 2001... está tudo aí... — diz Jezebel embriagada pelo medo e pelos remédios. A resposta era o que Revolt esperava ouvir...
— Se você estiver mentindo... Eu te acho até no inferno! — ele diz em tom de ultimato. Enquanto saía notou que uma mochila do mesmo lugar de onde tirou o laptop pendia agora sem o apoio do computador. A mochila está abarrotada de dinheiro...
“Ótimo! Eugênio vai saber fuçar nessa coisa... e então encontraremos Marisa.
Agora é hora de ir... Mas o que é isso...? Acho que os problemas financeiros acabaram!”
Revolt pega a mochila e corre. Desce as escadas. No andar térreo ainda pode ouvir Sexta-Feira se lamentar por seus órgãos perdidos e pelos olhos queimados. O motoqueiro sai pelos fundos e vai até sua moto, deixada escondida no matagal. Antes de sair, porém, olha para a casa de Jezebel:
— Estabelecimento interditado! — da moto ele tira uma granada. Uma daquelas granadas[1]. Ele puxa o pino e, com precisão militar atira a granada que entra pela janela da cozinha. Lá dentro ela rola até parar há menos de um metro do botijão de gás.
A explosão é ouvida num raio de cinco quilômetros.
Enquanto o fogo ainda sobe ao fundo, Revolt guia sua moto levando o laptop, onde provavelmente está o paradeiro de sua irmã e também a mochila de dinheiro. A chuva anunciada pelos trovões começa a cair. Ele segue o caminho secreto e sai da favela pela tubulação aberta chegando no seu quartel general.
Lá ele encontra Eugênio dormindo debruçado em livros. Seu irmão que tanto zela pelo sucesso dessa sua missão está se prejudicando nos estudos. As noites em claro, as faltas nas aulas para arrumar seus equipamentos. Marcelo pensa por um instante se é justo isso. Nisso Eugênio acorda:
— Marcelo...? Tudo certo?
— Comigo tudo...
— Você tá fedendo!
— É... resolvi nadar um pouco no rio...! Mas olha aí... nesse computador... aí diz onde Marisa está. — Ótimo! Vou examinar agora mesmo e--
— Não... deixa pra amanhã. Hoje não posso fazer mais nada mesmo. Vamos pra casa. Você precisa descansar...
— Eu tô legal, Marcelo... É você que fica no fogo cruzado...
— Mas não é justo que você prejudique sua vida assim...
— Temos que encontrar Marisa, não é? Vale a pena.
— É... vale a pena. E olha isso... mais grana pra financiar nossa operação. Mas por hoje chega...
Dia seguinte. Marcelo chega ao seu local de trabalho no Centro de São Paulo. Porém o escritório do Senhor Batista está fechado. Na porta um papel escrito “luto”. Marcelo logo percebe o motivo: A filha de Batista, que estava doente havia alguns dias.
Não haverá trabalho hoje. Por um lado é bom, pois Marcelo pode descansar para à noite seguir a informação que Eugênio encontrar sobre Marisa. Por outro lado é uma diária que deixa de ganhar. Na volta para casa, Marcelo para de frente a uma banca de revistas onde lê a manchete de um jornal: “Bordel na favela do Tijuco Preto explode. Testemunhas apontam para motoqueiro suspeito”.
— Zica! — exclama Marcelo, pois sabe que isso não é bom para suas ações furtivas.
Longe dali, de posse de uma edição do mesmo jornal, um homem alto e magro espera na sala de uma casa da favela. Logo em seguida Criminal D vai até sua presença. O homem alto mostra o jornal. D esfrega o cavanhaque:
— Sabe... tô ficando com raiva desse motoqueiro, Jeremias. — D fala calmamente.
— Eu também, Deividson...
— Não me chama de Deividson.
— Desculpe... D... Esse... “Revolt”... ele deve trabalhar para uma gangue rival...
— Não... O lance dele é tipo pessoal... Me falaram que ele tá atrás de alguém... alguém que Jezebel conhecia... por isso fudeu com ela...
— Jezebel está na UTI. Sobreviveu porque conseguiu saltar pela janela. Sexta-Feira sofreu queimaduras de terceiro grau. Tá cego de um olho...
— Fodam-se...
— Mas--
— Fodam-se!
— Hmmm... E o tal Revolt?
— Ele não vai parar até conseguir o que quer... A porra é que eu não sei o que ele quer! Deve ser uma namorada... ou irmã... sei lá... Que foda!
Enquanto os dois criminosos conversam na sala, de um quarto, uma linda mulata com os olhos tristes observa os dois na presença de outras três moças. Seu nome é Marisa. Marisa Bastos.
_________________
[1] - Na edição anterior.
Continua...
Por: Anderson Oliveira
Muitos nomes poderiam se atribuídos a esse lugar. Um lugar que já foi descrito por numerosos poetas com grande luxo e beleza, mas este em particular na realidade não passa de um sobrado comum. Por fora ninguém diria o que acontece lá dentro. Claro que os boatos correm e, principalmente entre os homens, não é nenhum segredo o principal atrativo da casa.
As mulheres não são nem muito belas, nem muito feias. Extremamente vulgares, isso sim. No ambiente comum da casa, em meio à música, álcool e drogas, as mulheres que lá se ocupam com os homens estão nesta vida por diversos motivos. Mas todas por livre e espontânea vontade. Sorte que não é de todas. Há aquelas que caem numa armadilha.
No porão desta casa se esconde uma face de dor. Apesar de decorado e iluminado, com certo conforto, o porão é chamado por aqueles que o guardam de Tumbeiro, em alusão aos navios negreiros da época da escravidão. Pois aqui são cativas escravas. Negras, brancas, não importa. O único quesito é serem belas o bastante para satisfazerem o desejo de seus futuros compradores.
Estas já estão vendidas. Elas não sabem disso. Pensam estar alojadas numa filial de uma grande agência de modelos. Pensam que amanhã pegarão um avião para Milão, Paris ou Londres. Realmente amanhã pegarão um avião, mas os destinos não serão as passarelas. Dez garotas... Dez garotas vendidas.
Tiros. Gritos. Muita confusão.
Um caos que assusta as garotas. Há algo errado lá em cima. Os passos no andar de cima são frenéticos. Os gritos das mulheres e dos homens são de medo. As dez garotas no tumbeiro se atemorizam ainda mais por não saberem o que está havendo. Então a porta se abre.
É ela. A mulher gentil com um sorriso materno. A senhora de uns sessenta anos que comanda a agência. Agora seu rosto está coberto por maquiagem carregada. Agora seus olhos expressam um medo infantil. De frente a porta recém aberta ela permanece por um instante completamente imóvel.
— Dona Jezebel...? — balbucia uma das jovens com estranheza nos seus belos olhos castanhos.
A resposta de Jezebel é um passo a frente. Então as dez garotas podem ver uma figura que estava oculta na escuridão. Ele ameaça Jezebel com uma pistola. Seu rosto é oculto nas sombras. A roupa cinza e preta parece estranha aos olhos das garotas que ficam imóveis ao perceberem a arma.
Porém o susto é maior ao vislumbrarem sua máscara.
“Invadir pelos fundos, derrubar os poucos seguranças que bebiam cachaça na cozinha... isso foi fácil. Um passo errado e caí na sala... gritos das mulheres assustadas... lutar contra uns metidos a valente foi inevitável. Mas foi bom, pois assim ela apareceu. A cafetina desgraçada que é a única que pode me dizer onde está Marisa. Por isso ainda não estourei sua cara... vontade não me falta.
Ela me trouxe aqui. O cativeiro onde as garotas corrompidas esperam até serem despachadas. Enquanto estas dez garotas se assustam com a minha presença, corro meus olhos em busca do rosto que tanto procuro... mas Marisa não está mais aqui.”
— Onde estão as outras?! — Revolt pergunta com a voz forte e o cano da arma pressionado contra as costas de Jezebel.
— M-mas... que outras?! — diz a mulher, sem expressar medo, apenas indignação.
— As que vieram aqui... na última semana?!
— Já se foram... nunca ficam aqui mais de uma noite!
— Pra onde foram?! — Revolt está visivelmente irritado.
— Depende... Vão para muitos lugares... — Jezebel apesar de estar sendo ameaçada não expressa medo.
— Que lugares?! — a voz de Revolt se torna mais forte a cada pergunta.
— Tóquio... foram muitas para Tóquio... Algumas para Amsterdã... A maioria foi para Roma. Mas sempre uma ou duas são escolhidas...
— Escolhidas?!
— D as escolhe para seu harém...
“Criminal D... desgraçado! Porém se Marisa estiver com ele fica mais fácil resgatá-la. Mas... Como? Essa vadia deve ter um registro... algo onde anota para onde foram as garotas... como se fossem mercadorias a serem vendidas... Ele deve ter algo assim... Mas... essas garotas que estão aqui... não posso deixá-las sofrer o mesmo destino...”
Revolt agressivamente joga Jezebel para dentro da sala. Ela cai entre as garotas que permanecem gélidas de medo.
— Vocês... venham comigo. — diz Revolt. Porém as garotas hesitam. Revolt percebe que elas ainda não tomaram noção do que está se passando. — Aqui não existe nenhuma agência de modelos... Isso é um bordel... Vocês seriam mandadas para outros países para se prostituírem.
As palavras daquele misterioso mascarado assustaram ainda mais as garotas. Como crer nesse sujeito? Como crer que um sonho tão esperado na verdade não passa de uma grande desgraça? As garotas olham para Jezebel, ainda no chão, procurando alguma resposta. A cafetina nada diz, simplesmente abaixa os olhos de vergonha. Para as garotas é a confirmação dos fatos.
Uma a uma deixam o tumbeiro, sobem pelas escadas até o andar superior, onde prostitutas chorosas estão sentadas no chão frio enquanto os poucos homens no recinto esboçam uma intenção de reação, mas ao verem Revolt subir atrás das garotas eles rapidamente “murcham as orelhas”. Antes, porém, ele trancou Jezebel no porão.
Revolt as acompanha até a porta da rua, de onde as garotas saem chocadas e ao mesmo tempo aliviadas. Ele volta para dentro enquanto percebe que os homens e as mulheres fogem pela mesma porta. Revolt agora só pensa em acertar contas com Jezebel.
De volta ao porão, ele se tranca com ela lá dentro.
— Você tem um registro das garotas que saem daqui, certo? — Revolt pergunta puxando uma cadeira onde se senta. A resposta de Jezebel é apenas um olhar vingativo. — Pois bem... não me custa nada revirar esse lugar em busca desse registro. Mas se você me entregar... será melhor pra nós dois.
Novamente não há resposta. A cafetina apenas se levanta e limpa seu vestido vermelho com as mãos. Revolt cruza os braços. Perdura um longo silêncio até que passos firmes são ouvidos no andar de cima. Tal ruído faz Jezebel sorrir. E isso só pode representar problemas para Revolt.
— Chega de palhaçada... — Ele se levanta e a pega pelo pescoço. — Me dê esse registro... senão--
— Hahahahha!! — Jezebel solta uma gargalhada que Revolt até então só havia ouvindo em filmes de terror classe B.
— Tá... Não queria bater em mulheres... Ainda mais... anciãs...! — com essa provocação Revolt joga Jezebel contra a parede da esquerda. Ela cai sobre uma mesa com jarros de flores.
— Você vai se arrepender... — diz Jezebel limpando o fio de sangue que escorre por sua boca. Antes de Revolt ordenar os pensamentos para responder, um forte golpe faz com que a porta se abra. Ao se virar Revolt vê um homem forte, de mais de dois metros de altura, negro, com uma marreta na mão. Revolt engole seco. — Cuide dele... Sexta-Feira 13!
Ao comando de Jezebel, o homem chamado de Sexta-Feira 13 (certamente por portar uma marreta do mesmo nome ou qualquer outro motivo mais escuso), investe contra Revolt que mal pode reagir. Sexta-Feira lhe acerta uma marretada no peito que faz Revolt recuar bem um metro e meio. Em seguida ele o puxa pela perna e sobe as escadas o arrastando. No andar superior, ainda o segurando pelo pé, Sexta-Feira o arremessa contra uma coluna da casa. Revolt cai inerte.
— Fracote... — diz Sexta-Feira com uma voz firme condizente com sua aparência. Em seguida Jezebel surge atrás dele:
— Livre-se do lixo, Sexta-Feira...
— Tá. — com essa resposta ele pega Revolt com uma única mão e o joga nos ombros. Sexta-Feira se dirige até a saída dos fundos, sai no quintal, de onde tem um acesso para o córrego Tijuco Preto. Sexta-Feira anda pelo matagal até a margem do córrego e lança Revolt nas águas poluídas. — Esse não dá mais trabalho...
Sexta-Feira volta satisfeito para a casa. Passando pela cozinha apanha uma banana. Na sala se senta no sofá, deixa sua marreta do seu lado e come sua banana. Jezebel observa a desarrumação do lugar enquanto pressiona um pedaço de papel na sua boca. Então ela se volta para Sexta-Feira 13 e lhe diz:
— O que fez com ele?
— Joguei no rio...
— Seu imbecil! Não sabia que D ofereceu uma recompensa por esse motoqueiro?
— Não.
—Não importa... Agora... vá atrás das vagabundas que fugiram...
— Depois.
— Eu estou mandando você--
— Depois!
— Certo... irei me recolher... — Jezebel sobe para o andar de cima. Enquanto sobe diz em voz baixa: — Porco infeliz...
— Vaca. — diz Sexta-Feira também em voz baixa. Em seguida ele vai até outro cômodo da casa, onde há uma televisão e um aparelho de DVD, assim como vários DVDs numa estante. Ele escolhe um deles com um largo sorriso e o coloca no aparelho. Em seguida se senta numa poltrona velha de frente para a TV. Quando o filme começa ele diz: — Oba... Chaves!
O gigantesco homem se diverte com o programa humorístico como se fosse uma criança enquanto a madrugada avança. Lá fora, as nuvens encobrem o luar e as estrelas. Sinal de chuva, o que é comum na transição entre verão e outono. Os trovões longínquos são o único ruído nesta noite.
E tão silencioso quanto a boca da noite, um vulto entra pela porta dos fundos. Seus pés, embebidos num lodo fétido, deixam um rastro imundo por onde passa. O intruso ganha a sala, agora escura e sem ninguém, então ouve risos vindos de outro cômodo. E, de posse daquela marreta, ele vai até lá:
— O quê?! — são as únicas palavras de Sexta-Feira 13 antes de ser atingido por sua própria marreta. O golpe o faz cair da poltrona, mas a dor é ínfima. — Mas... Eu não me livrei de você?! — ele pergunta ao seu agressor.
— Ninguém tem paciência comigo! — responde Revolt, após dar uma rápida olhada na televisão. Aconteceu que ao ser jogado no rio teve sorte de ficar preso nos entulhos que poluem as águas, e ao recobrar a consciência pôde voltar para a casa de Jezebel.
Mas as explicações são o menor dos problemas de Sexta-Feira. Imediatamente Revolt o golpeia de novo. E de novo. E de novo... enquanto o criminoso apenas consegue recuar. Seu sangue escorre por seu nariz e boca enquanto seus braços inutilmente tentam deter Revolt.
— P-porra!... S-seu... filadaputa! — balbucia Sexta-Feira 13. Revolt nada diz enquanto prossegue com os golpes na esperança de fazer o homem tombar, para então, ir até Jezebel e conseguir de uma vez por todas a localização de Marisa. E enquanto nisso pensa, se descuida por um segundo... Apenas um segundo... e Sexta-Feira lhe atinge uma rasteira.
Revolt vai ao chão com a marreta nas mãos, porém o peso do objeto se torna incontrolável e a marreta cai sobre a televisão que explode no rosto de Sexta-Feira. Distração perfeita para Revolt sacar uma arma que guardou no bolso interno de seu traje. Com um tiro atingiu as partes baixas de Sexta-Feira 13.
Fato que acabaria com sua função ali. Pois, segundo o que Revolt apurou, Sexta-Feira tinha o trabalho de violentar as garotas que eventualmente descobrissem a verdade sobre os negócios escusos de Jezebel e depois matá-las, caso ainda assim elas se recusassem a “trabalhar”. Revolt sorriu por baixo da máscara.
Enquanto faíscas resultantes da explosão da TV ainda se espalhavam pelo cômodo, Revolt se levantou e saiu dali.
“Se Jezebel ainda estiver na casa, ela só pode estar num quarto particular, no andar superior. Claro! E lá ela deve guardar os registros das garotas! Somente lá está o paradeiro de Marisa! Rapidamente subo as escadas... o tempo é curto... Não faço ideia de quanto tempo fiquei desacordado... Meu corpo ainda dói...”
No andar de cima apenas um corredor com três portas. Duas delas abertas, provavelmente o lugar onde as prostitutas recebem os homens. O quarto fechado só pode ser onde Jezebel fica.
Revolt chuta a porta. Jezebel dormia como uma pedra, sobre o efeito de remédios, claro. Mas com o estrondo do arrombamento da porta ela acorda. Mesmo grogue Jezebel ainda consegue tirar um revólver debaixo do travesseiro. Revolt pouco se importa. Ele se aproxima e a puxa pelos cabelos:
— Eu quero os registros... — enquanto fala ele tira a arma de Jezebel esmagando os dedos franzinos da mulher. Depois enfia a arma na boca da mesma: — Só os registros.
Com um medo descomunal no olhar, medo que antes não demonstrava, Jezebel aponta para um laptop que está sobre um guarda-roupa. Revolt vai até o objeto, ainda apontando a arma para Jezebel. Estica um pouco o braço e alcança o laptop.
— Aqui está tudo? — ele pergunta.
— Todas... todas as mulheres... que passaram por aqui... desde 2001... está tudo aí... — diz Jezebel embriagada pelo medo e pelos remédios. A resposta era o que Revolt esperava ouvir...
— Se você estiver mentindo... Eu te acho até no inferno! — ele diz em tom de ultimato. Enquanto saía notou que uma mochila do mesmo lugar de onde tirou o laptop pendia agora sem o apoio do computador. A mochila está abarrotada de dinheiro...
“Ótimo! Eugênio vai saber fuçar nessa coisa... e então encontraremos Marisa.
Agora é hora de ir... Mas o que é isso...? Acho que os problemas financeiros acabaram!”
Revolt pega a mochila e corre. Desce as escadas. No andar térreo ainda pode ouvir Sexta-Feira se lamentar por seus órgãos perdidos e pelos olhos queimados. O motoqueiro sai pelos fundos e vai até sua moto, deixada escondida no matagal. Antes de sair, porém, olha para a casa de Jezebel:
— Estabelecimento interditado! — da moto ele tira uma granada. Uma daquelas granadas[1]. Ele puxa o pino e, com precisão militar atira a granada que entra pela janela da cozinha. Lá dentro ela rola até parar há menos de um metro do botijão de gás.
A explosão é ouvida num raio de cinco quilômetros.
Enquanto o fogo ainda sobe ao fundo, Revolt guia sua moto levando o laptop, onde provavelmente está o paradeiro de sua irmã e também a mochila de dinheiro. A chuva anunciada pelos trovões começa a cair. Ele segue o caminho secreto e sai da favela pela tubulação aberta chegando no seu quartel general.
Lá ele encontra Eugênio dormindo debruçado em livros. Seu irmão que tanto zela pelo sucesso dessa sua missão está se prejudicando nos estudos. As noites em claro, as faltas nas aulas para arrumar seus equipamentos. Marcelo pensa por um instante se é justo isso. Nisso Eugênio acorda:
— Marcelo...? Tudo certo?
— Comigo tudo...
— Você tá fedendo!
— É... resolvi nadar um pouco no rio...! Mas olha aí... nesse computador... aí diz onde Marisa está. — Ótimo! Vou examinar agora mesmo e--
— Não... deixa pra amanhã. Hoje não posso fazer mais nada mesmo. Vamos pra casa. Você precisa descansar...
— Eu tô legal, Marcelo... É você que fica no fogo cruzado...
— Mas não é justo que você prejudique sua vida assim...
— Temos que encontrar Marisa, não é? Vale a pena.
— É... vale a pena. E olha isso... mais grana pra financiar nossa operação. Mas por hoje chega...
Dia seguinte. Marcelo chega ao seu local de trabalho no Centro de São Paulo. Porém o escritório do Senhor Batista está fechado. Na porta um papel escrito “luto”. Marcelo logo percebe o motivo: A filha de Batista, que estava doente havia alguns dias.
Não haverá trabalho hoje. Por um lado é bom, pois Marcelo pode descansar para à noite seguir a informação que Eugênio encontrar sobre Marisa. Por outro lado é uma diária que deixa de ganhar. Na volta para casa, Marcelo para de frente a uma banca de revistas onde lê a manchete de um jornal: “Bordel na favela do Tijuco Preto explode. Testemunhas apontam para motoqueiro suspeito”.
— Zica! — exclama Marcelo, pois sabe que isso não é bom para suas ações furtivas.
Longe dali, de posse de uma edição do mesmo jornal, um homem alto e magro espera na sala de uma casa da favela. Logo em seguida Criminal D vai até sua presença. O homem alto mostra o jornal. D esfrega o cavanhaque:
— Sabe... tô ficando com raiva desse motoqueiro, Jeremias. — D fala calmamente.
— Eu também, Deividson...
— Não me chama de Deividson.
— Desculpe... D... Esse... “Revolt”... ele deve trabalhar para uma gangue rival...
— Não... O lance dele é tipo pessoal... Me falaram que ele tá atrás de alguém... alguém que Jezebel conhecia... por isso fudeu com ela...
— Jezebel está na UTI. Sobreviveu porque conseguiu saltar pela janela. Sexta-Feira sofreu queimaduras de terceiro grau. Tá cego de um olho...
— Fodam-se...
— Mas--
— Fodam-se!
— Hmmm... E o tal Revolt?
— Ele não vai parar até conseguir o que quer... A porra é que eu não sei o que ele quer! Deve ser uma namorada... ou irmã... sei lá... Que foda!
Enquanto os dois criminosos conversam na sala, de um quarto, uma linda mulata com os olhos tristes observa os dois na presença de outras três moças. Seu nome é Marisa. Marisa Bastos.
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[1] - Na edição anterior.
Continua...
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