Em um mundo onde Satanás reina e os anjos são mortais, um pequeno grupo de Nefilins têm um plano para mudar essa situação. Profany, um anjo esquecido no inferno deve ser resgatado. Para isso, Noriel, seu antigo amigo deverá descer ao Inferno.
Só que isso não será uma tarefa fácil.
Por: Anderson Oliveira
02. O Evangelho de Profany, parte 2.
O Ritual.
Seus passos são apressados. Sua respiração ofegante. O toque sombrio do poente já tinge os prédios em ruínas daquela que um dia fora a cidade de Liverpool. E eles já começam a perambular por aí. Ela pode sentir o fedor. Não é seguro estar na rua à noite. Mesmo com a Magnum 42 em sua cintura, ela não quer arriscar. Lembra-se do que aconteceu com seu irmão no ano passado. Ainda pode sentir o cheiro de sua carne queimando e ver seus olhos sangrando e implorando por uma ajuda que não veio. Rezando para um Deus que não existe.
Por isso ela agora corre, deixando cair da sacola as maçãs que conseguiu no mercado. Por sorte aceitaram apenas dinheiro como pagamento e não algum serviço de seu corpo. Sua casa está perto, mas não pode deixar de perceber um grito na distância, cada vez mais alto e próximo de si, ao passo que o sol não mais pode ser visto no oeste. A portinhola de aço reforçado se abre diante de si. Ela apressadamente desce as escadas enquanto alguém cuida de fechar a estreita passagem, com não menos do que dez travas.
— Que bom que conseguiu, Liza! — sua mãe a abraça com força enquanto a moça chamada Liza deixa a sacola cair no chão, por onde rolam as maçãs que sobraram, assim como as laranjas e as batatas.
— Porque demorou, filha? — diz seu velho pai, carregando a Winchester ao lado de seu irmão mais novo. Apenas um garoto de onze anos e já expert no uso das armas. A pergunta do pai ainda ecoa naquela mistura de casa com abrigo anti-bombas quando os gritos que Liza ouvira se intensificam.
Logo, o pai e o irmão sobem correndo e observam através das trincheiras camufladas empunhando seus rifles da mesma forma que treinaram exaustivamente nos últimos anos. A mãe se ajoelha diante de uma estátua de Buda e entoa um mantra. O budismo foi escolhido por aqueles que ainda precisam rezar para se sentirem melhor, pois é uma religião que não tem um Deus. Liza prefere subir e ver o que ocorre do lado de fora.
E o que ela vê é uma jovem, não muito mais nova do que ela, cercada por cinco homens de diferentes idades e físicos e uma mulher, todos com armas, desde revólveres a facas, vestidos de preto ou vermelho, com tatuagens e correntes deixando bem claro a quem servem e no que acreditam. A garota é espancada livremente. Tem suas roupas rasgadas e sua vagina penetrada inúmeras vezes, além de seu ânus que irrompe em sangue.
Depois de servir de fonte de prazer, seus seios são cortados com as facas. Em sua barriga são riscadas palavras de maldição. Por fim, enquanto dois dos homens bebem o sangue que mina de seu peito, a mulher lhe decepa a cabeça lentamente, fazendo questão de lhe infligir mais e mais dor, fornecendo mais sangue para o banquete, que só termina quando o fogo consome a carne daquela moça, que ainda é devorada pelos homens como se fossem animais. Sua cabeça é levada como troféu.
Liza ainda vê com horror aquilo. Apesar de já ser costumeira tal cena. O motivo do toque de recolher. O motivo de ter de andar armada quando precisa sair de casa. Ela quer rezar, pedir ajuda, mas sabe que ninguém vai ajudá-la. Sabe que o Deus que amava quando criança se foi, que seus anjos foram derrotados e que agora é o diabo quem governa a Criação. Por isso aqueles homens fazem o que querem. Eles são satanistas.
Eles mataram seu irmão no ano passado.
Eles eram seus vizinhos da frente.
Deus não existe.
O céu, de uns anos pra cá, adquiriu um aspecto avermelhado, seja em qualquer momento, desde a aurora até o crepúsculo, e mesmo durante a noite. Chega a ser um espetáculo bonito ver a Lua Cheia tingida de rubro, mas é ao mesmo tempo aterrador quando você vê e tem a impressão de que ela está sangrando. De que as nuvens são bolsões de sangue dos condenados prestes a transbordar a qualquer momento. Por sorte, a água que cai na chuva ainda é a mesma. Isso quando a sorte deixa que chova. O que não é sempre. Mas quando chove a água é ácida e poluída pela radiação em alguns lugares, mas não é vermelha.
Só a água do mar recebe essa coloração, pois reflete o céu. Ainda não lançaram sondas novas ao espaço e as que ficaram lá estão sem comunicação desde o grande conflito, então não se sabe se vista do alto a Terra se tornou um planeta vermelho. Isso norteia os pensamentos de Noriel, quando ele e Lorde Gabriel embarcam no velho cargueiro a fim de por seu plano em prática.
Sorrateiro à noite o barco zarpa, fugindo de represálias dos humanos daquelas terras germânicas, indo para o mar atlântico, onde é seguro para os nefilins, ainda que piratas humanos perambulem por aquelas águas. Não por menos, as armas do cargueiro estão carregadas e seus tripulantes em estado de alerta.
Gabriel lê com atenção o livro de bruxaria numa cabine, fazendo anotações em folhas soltas de papel, mal acostumado com o manuseio do lápis. Ele se acostumou bem ao vinho, e não dispensa uma garrafa ao seu lado. Alguns nefilins lhe servem como assistentes e esperam as ordens do Lorde. No comando do barco está outro que ainda é chamado de lorde: Haziel, o querubim.
Hoje o vemos sob a forma de uma bela mulher. De jeito selvagem e desleixado, mas ainda assim uma mulher. Noriel se lembra que quando os anjos foram lançados na Terra, eles assumiram a forma que estavam usando naquele momento. O que não é necessariamente sua forma verdadeira (se é que tinham). Alguns foram transformados em homens, outros em mulheres. Mas alguns, em corpos de homem receberam mentes de mulher, e vise-versa, como foi com Haziel.
Noriel agradece por ter sido feito homem com mente de homem, ainda mais depois que conheceu os prazeres do sexo e viu como as mulheres humanas são fabulosas. E não é o único que tem essa opinião. Na embarcação ele encontra o contra-mestre, Maquiash, que tomou por esposa uma jovem espanhola e teve um filho com ela. A criança nasceu estranha e hoje, com dez anos de idade, é mais alta que o pai. Noriel teme que uma nova raça de gigantes cresça absurdamente. E, pensando nisso, até entende os nefilins que resolveram permanecer assexuados, como o Lorde Metraton, chefe do Conselho de Novo Éden, a cidade dos nefilins na África. É quando Noriel se dá conta que Gabriel está agindo sem o consentimento do Conselho.
— Noriel, venha cá. — ouve Gabriel lhe chamar e deixa suas divagações de lado. Ao entrar na cabine, não pode deixar de sentir o cheiro do vinho que emana de lá. Estranhamente Gabriel não parece bêbado o suficiente para atrapalhar o que vem a seguir.
— Já achou um modo de tirarmos Profaniel do Inferno? — diz secamente, deixando pra trás qualquer cerimônia. Gabriel balança a cabeça em sinal de positivo e, após outro gole da garrafa, lhe diz:
— Venha comigo. — e abre a porta atrás de si, levando a um aposento praticamente vazio, onde alguns ajudantes colocam uma velha banheira no centro do cômodo. Noriel não compreende aquilo, mas observa quando Gabriel abre o livro sobre o chão e, com um giz trazido por um ajudante, começa a riscar estranhas runas e símbolos copiando-os do livro.
— Parece que achou sim. — diz Noriel em voz baixa, vendo ainda outros ajudantes trazendo sacos e mais sacos de algo que não consegue ver o que é. Gabriel manda chamarem Haziel quando finaliza o último desenho. Em seguida, ele mesmo e mais um dos ajudantes despeja o conteúdo dos sacos na banheira enquanto outro despeja dois baldes de água. Noriel vê que o que tinha dos sacos é gelo. — O que você vai fazer afinal?
— Trazer Profaniel para cá, ora. — responde Gabriel sem olhar para ele. Depois que a banheira está cheia o suficiente, o lorde nefilim se volta para Noriel e, com a mão em seu ombro diz: — Para isso, você terá de buscá-lo.
— Como disse? — o olhar de Noriel foi cômico, mas Gabriel não riu. E tão secamente quanto disse da primeira vez, respondeu:
— isso mesmo. Você terá de buscá-lo.
— E como farei isso? — dessa vez Gabriel muda a expressão do rosto, deixando-o mais sombrio, se é que é possível.
— Essa é parte fácil. Para ir para o Inferno... você irá morrer. — Noriel deu um passo para trás, se segurando firme no cajado, ao mesmo tempo que a bela Haziel entra na sala portando alguns objetos e a porta é fechada atrás dela. Noriel tem a leve impressão que aquilo foi para ele não fugir. Se voltando, vê um dos tripulantes, o mesmo que trouxe o gelo, a abrir outro saco e dele derramar sal sobre o vão da porta. No outro extremo, velas vermelhas são acesas. — Para quê tudo isso? — diz Noriel parecendo querer mudar de assunto.
— Para os demônios não entrarem aqui. — se limitou a responder Gabriel sem explicações. Pois todos ali sabem como funciona. Noriel mesmo reflete em como, agora sendo meros mortais, eles são presas fáceis nas garras dos demônios, invisíveis e onipresentes. Entende porque daqueles rituais pagãos, o que não o tranquiliza quanto ao fato de ter ouvido claramente que iria ser morto.
— E essa história de me... me matar? — diz sem disfarçar o medo.
— Não se assuste. Veja. — e Gabriel apontou para a banheira. — Você irá entrar ali e será resfriado até seu coração parar de bater. Se nossa fisiologia é similar a dos humanos, o que eu penso que é, então você estará num estado de morte clínica. Nós teremos exatos seis minutos para fazer seu coração voltar a bater, por meio de técnicas de primeiros socorros. Senão... — e seu olho bom desvia do rosto de Noriel. — Senão ai teremos morte cerebral.
— Seis minutos?
— Estando do outro lado, o tempo não existe mais. Seis minutos será uma eternidade. O suficiente para descer ao mais profundo poço do Tártaro, resgatar Porfaniel e trazê-lo de volta. E isso me lembra, trouxe algum objeto que lhe pertencia? Claro que isso seria meio difícil. Ele andou pela Terra há mais de duzentos anos...
— Mas eu trouxe. — e Noriel, ainda sem assimilar direito a história sobre morte clínica e cerebral, tira da bolsa que sempre traz pela cintura um embrulho. Gabriel o pega e o desdobra até revelar uma camisa velha e puída. — Achei nos destroços de um museu em Londres. Sei que era dele pelo brasão dos Goodsmith. A família da mortal, Kate Goodsmith, por quem ele se apaixonou.
Gabriel franziu o cenho e pigarreou algo, entregando as roupas para seu ajudante, assim como o livro. O ajudante cuidaria de preparar as roupas para o ritual. Alheio a isso, Noriel se dá conta que Haziel traz um balde de metal com um ferro mergulhado em brasas, mas não quis saber para quê seria usado. Talvez para acender mais velas, pensou. Parece que Gabriel estava mais adiantado em seu plano do que Noriel imaginava.
— Se é assim que deve ser... — diz Noriel tirando sua túnica e se dirigindo para a banheira.
— Ótimo... com o gelo você sentirá menos a dor. — Gabriel diz tirando o ferro do balde de brasas. Noriel não percebe, pois usa sua parca concentração para tomar coragem e mergulhar no gelo. Primeiro o pé direito, calejado e sujo, depois o outro, em pior situação. O frio queima sua pele, mas ele continua.
— Es-espero... que... isso... f-funcione... — o frio lhe toma mais ainda quando senta o traseiro nu na água. Os presentes parecem sentir pena pelo sofrimento e orgulho pela coragem do nefilim. Menos Gabriel, que continua impassível preparando o ferro para ser usado. Assim, estando Noriel com gelo e água até o pescoço, Gabriel se aproxima por trás, e o empurrando pra frente pela cabeça, o marca com o ferro quente como se Noriel fosse um boi. — Aarghh!!
— Isso é para sua proteção. — diz Gabriel ao remover o ferro e ver a ferida ainda fresca que forma um símbolo antigo. — Com essa marca, você estará protegido dos espíritos imundos, desse e do outro lado. Eles não podem ler sua mente, nem te ferir. Terá caminho livre no além.
— Que... ótimo... — balbucia Noriel. Nisso, Gabriel se volta para o ajudante que ficou com o livro e a roupa e constata que ele já as preparou de acordo. Quatro nós na camisa que fica dentro de um pentagrama ainda cercado de palavras em hebraico.
— Vamos começar. — diz o Lorde se sentando em uma cadeira, enquanto observa Noriel assumir tons azulados dentro da banheira.
Todos os outros na sala fazem silêncio enquanto seus rostos refletem medo sob a luz gordurosa das velas. Eles pensam “já fomos anjos de Deus, agora sujeitos a empregar rituais pagãos! Isso é errado” como se a situação em que vivem agora fosse a certa. Como se o certo fosse Lúcifer sentado do Trono de Deus. Gabriel sabe que o ditado humano é verdadeiro: tempos desesperados pedem metidas desesperadas.
Alheio a isso, Noriel procura não pensar em nada. Ninguém lhe pediu isso e nem ele mesmo sabe se vai ajudar. Mas ajuda a não pensar na dor que sente. Se bem que a dor vai sumindo aos poucos. Ele então se sente confortável. Agora vem uma grande vontade de dormir. Seria bom dormir... É agora. Ele reconhece os sintomas da hipotermia. Seu instinto de sobrevivência o manda abrir bem os olhos e resistir. Fitando rapidamente o olhar de Gabriel, parece que ele ouve o outro dizer para se entregar ao sono, mesmo que o outro não diga nada.
Então ele assim o faz. Fecha os olhos, respira como se fossa pela última vez. O ar quente parece não ser aceito pelo seu pulmão frio. Ele tosse. As pessoas na sala avançam um passo, mas logo param. Quando eram anjos, já viram a morte muitas vezes. Ela, a morte, era um deles, tinha muitos nomes e faces. E mesmo nas guerras que se sucederam viram a morte de seus iguais. Então eles sabem ser frios o bastante.
Noriel para de tossir. Lentamente seus olhos param de piscar, ficando fechados como se mergulhasse num sono profundo. Sua pele, coberta de cristais de gelo, principalmente na região da boca e nariz, fica imóvel. Gabriel se aproxima dele e põe seus dedos pesados em seu pescoço. Suas feições mudam vagamente e ele diz aos outros.
— Temos seis minutos.
Não há mais frio. A respiração é mais fácil. Não há mais o peso da carne e dos ossos. A sensação é muito boa. Como um sonho. Agora que é mortal ele sonha e é o único momento em que não sente a angústia de ser mortal. Mas isso consegue ser melhor que um sonho... é como se não fosse mais mortal... Noriel sorri quando abre os olhos. Está escuro. Tem a impressão de estar de pé... sim... e ele vê um pequeno ponto de luz na distância. Sem perceber está andando em direção aquela luz. A luz se aproxima devagar e parece que fica mais agradável quanto mais perto dela se chega. É quando ele percebe.
— Estou morto. — Ele para de avançar, com instinto de dar meia volta e sair dali, fraqueza humana que adquiriu nos últimos anos, mas ele sabe do seu objetivo. Então dá um passo a frente e, se dando conta que não é mais um ser de carne fraco e limitado, só com a força do pensamento começa a voar - ou algo assim - em direção a luz. É como ter seus poderes angelicais novamente, ainda que incompletos. É quando a luz se aproxima...
Ele nem sente atravessá-la. Quando se dá conta, está de pé, com um terno branco e sapatos brancos. Seu rosto é jovial, seus cabelos estão curtos novamente. Sua imagem no mundo do além é a de quando era um anjo. Mas aqui ele não é um anjo, mas um espírito, e ele se encontra agora do caminho das almas. A paisagem é de um campo terreno, com gramado e árvores, e mesmo um céu sobre sua cabeça, mas tudo em tom esverdeado, frio e a certo momento sinistro. Claro, não há a presença de Deus aqui como deveria ter.
— Acho que aqui não é o seu lugar, nefilim. — um voz diz atrás de si. Noriel se volta e vê um rapaz, com corpo e rosto primitivo, como um homem das cavernas, ou mesmo ancestral do homo sapiens, vestindo-se de pele de carneiro, com um cajado na mão, pés descalços e peludos na grama e cabelos se confundindo com a barba. Noriel tem a impressão que já viu esse homem antes, num passado muito distante.
— Quem é você? — pergunta Noriel com certeza de que não lembraria pela memória. Mas logo o jovem primitivo lhe responde, e a resposta lhe causa assombro:
— Sou o primeiro a vir pra cá... Ab.El fui chamado. — Abel, filho de Adão.
Longe dali, imerso nas profundezas do Inferno, a figura esquelética presa por correntes e atada a fios parece sentir algo de diferente na ordem das coisas. Ele, erguendo os olhos cheios de rancor, com sua boca selada e medonha, parece procurar pela origem da sensação, mesmo sabendo que deve ser algum truque da sua mente. Profaniel sabe que ninguém vai tirá-lo de lá. Ninguém.
Ninguém.
* * *
A Seguir: Limbo, Purgatório e Inferno.
Só que isso não será uma tarefa fácil.
Por: Anderson Oliveira
02. O Evangelho de Profany, parte 2.
O Ritual.
Seus passos são apressados. Sua respiração ofegante. O toque sombrio do poente já tinge os prédios em ruínas daquela que um dia fora a cidade de Liverpool. E eles já começam a perambular por aí. Ela pode sentir o fedor. Não é seguro estar na rua à noite. Mesmo com a Magnum 42 em sua cintura, ela não quer arriscar. Lembra-se do que aconteceu com seu irmão no ano passado. Ainda pode sentir o cheiro de sua carne queimando e ver seus olhos sangrando e implorando por uma ajuda que não veio. Rezando para um Deus que não existe.
Por isso ela agora corre, deixando cair da sacola as maçãs que conseguiu no mercado. Por sorte aceitaram apenas dinheiro como pagamento e não algum serviço de seu corpo. Sua casa está perto, mas não pode deixar de perceber um grito na distância, cada vez mais alto e próximo de si, ao passo que o sol não mais pode ser visto no oeste. A portinhola de aço reforçado se abre diante de si. Ela apressadamente desce as escadas enquanto alguém cuida de fechar a estreita passagem, com não menos do que dez travas.
— Que bom que conseguiu, Liza! — sua mãe a abraça com força enquanto a moça chamada Liza deixa a sacola cair no chão, por onde rolam as maçãs que sobraram, assim como as laranjas e as batatas.
— Porque demorou, filha? — diz seu velho pai, carregando a Winchester ao lado de seu irmão mais novo. Apenas um garoto de onze anos e já expert no uso das armas. A pergunta do pai ainda ecoa naquela mistura de casa com abrigo anti-bombas quando os gritos que Liza ouvira se intensificam.
Logo, o pai e o irmão sobem correndo e observam através das trincheiras camufladas empunhando seus rifles da mesma forma que treinaram exaustivamente nos últimos anos. A mãe se ajoelha diante de uma estátua de Buda e entoa um mantra. O budismo foi escolhido por aqueles que ainda precisam rezar para se sentirem melhor, pois é uma religião que não tem um Deus. Liza prefere subir e ver o que ocorre do lado de fora.
E o que ela vê é uma jovem, não muito mais nova do que ela, cercada por cinco homens de diferentes idades e físicos e uma mulher, todos com armas, desde revólveres a facas, vestidos de preto ou vermelho, com tatuagens e correntes deixando bem claro a quem servem e no que acreditam. A garota é espancada livremente. Tem suas roupas rasgadas e sua vagina penetrada inúmeras vezes, além de seu ânus que irrompe em sangue.
Depois de servir de fonte de prazer, seus seios são cortados com as facas. Em sua barriga são riscadas palavras de maldição. Por fim, enquanto dois dos homens bebem o sangue que mina de seu peito, a mulher lhe decepa a cabeça lentamente, fazendo questão de lhe infligir mais e mais dor, fornecendo mais sangue para o banquete, que só termina quando o fogo consome a carne daquela moça, que ainda é devorada pelos homens como se fossem animais. Sua cabeça é levada como troféu.
Liza ainda vê com horror aquilo. Apesar de já ser costumeira tal cena. O motivo do toque de recolher. O motivo de ter de andar armada quando precisa sair de casa. Ela quer rezar, pedir ajuda, mas sabe que ninguém vai ajudá-la. Sabe que o Deus que amava quando criança se foi, que seus anjos foram derrotados e que agora é o diabo quem governa a Criação. Por isso aqueles homens fazem o que querem. Eles são satanistas.
Eles mataram seu irmão no ano passado.
Eles eram seus vizinhos da frente.
Deus não existe.
O céu, de uns anos pra cá, adquiriu um aspecto avermelhado, seja em qualquer momento, desde a aurora até o crepúsculo, e mesmo durante a noite. Chega a ser um espetáculo bonito ver a Lua Cheia tingida de rubro, mas é ao mesmo tempo aterrador quando você vê e tem a impressão de que ela está sangrando. De que as nuvens são bolsões de sangue dos condenados prestes a transbordar a qualquer momento. Por sorte, a água que cai na chuva ainda é a mesma. Isso quando a sorte deixa que chova. O que não é sempre. Mas quando chove a água é ácida e poluída pela radiação em alguns lugares, mas não é vermelha.
Só a água do mar recebe essa coloração, pois reflete o céu. Ainda não lançaram sondas novas ao espaço e as que ficaram lá estão sem comunicação desde o grande conflito, então não se sabe se vista do alto a Terra se tornou um planeta vermelho. Isso norteia os pensamentos de Noriel, quando ele e Lorde Gabriel embarcam no velho cargueiro a fim de por seu plano em prática.
Sorrateiro à noite o barco zarpa, fugindo de represálias dos humanos daquelas terras germânicas, indo para o mar atlântico, onde é seguro para os nefilins, ainda que piratas humanos perambulem por aquelas águas. Não por menos, as armas do cargueiro estão carregadas e seus tripulantes em estado de alerta.
Gabriel lê com atenção o livro de bruxaria numa cabine, fazendo anotações em folhas soltas de papel, mal acostumado com o manuseio do lápis. Ele se acostumou bem ao vinho, e não dispensa uma garrafa ao seu lado. Alguns nefilins lhe servem como assistentes e esperam as ordens do Lorde. No comando do barco está outro que ainda é chamado de lorde: Haziel, o querubim.
Hoje o vemos sob a forma de uma bela mulher. De jeito selvagem e desleixado, mas ainda assim uma mulher. Noriel se lembra que quando os anjos foram lançados na Terra, eles assumiram a forma que estavam usando naquele momento. O que não é necessariamente sua forma verdadeira (se é que tinham). Alguns foram transformados em homens, outros em mulheres. Mas alguns, em corpos de homem receberam mentes de mulher, e vise-versa, como foi com Haziel.
Noriel agradece por ter sido feito homem com mente de homem, ainda mais depois que conheceu os prazeres do sexo e viu como as mulheres humanas são fabulosas. E não é o único que tem essa opinião. Na embarcação ele encontra o contra-mestre, Maquiash, que tomou por esposa uma jovem espanhola e teve um filho com ela. A criança nasceu estranha e hoje, com dez anos de idade, é mais alta que o pai. Noriel teme que uma nova raça de gigantes cresça absurdamente. E, pensando nisso, até entende os nefilins que resolveram permanecer assexuados, como o Lorde Metraton, chefe do Conselho de Novo Éden, a cidade dos nefilins na África. É quando Noriel se dá conta que Gabriel está agindo sem o consentimento do Conselho.
— Noriel, venha cá. — ouve Gabriel lhe chamar e deixa suas divagações de lado. Ao entrar na cabine, não pode deixar de sentir o cheiro do vinho que emana de lá. Estranhamente Gabriel não parece bêbado o suficiente para atrapalhar o que vem a seguir.
— Já achou um modo de tirarmos Profaniel do Inferno? — diz secamente, deixando pra trás qualquer cerimônia. Gabriel balança a cabeça em sinal de positivo e, após outro gole da garrafa, lhe diz:
— Venha comigo. — e abre a porta atrás de si, levando a um aposento praticamente vazio, onde alguns ajudantes colocam uma velha banheira no centro do cômodo. Noriel não compreende aquilo, mas observa quando Gabriel abre o livro sobre o chão e, com um giz trazido por um ajudante, começa a riscar estranhas runas e símbolos copiando-os do livro.
— Parece que achou sim. — diz Noriel em voz baixa, vendo ainda outros ajudantes trazendo sacos e mais sacos de algo que não consegue ver o que é. Gabriel manda chamarem Haziel quando finaliza o último desenho. Em seguida, ele mesmo e mais um dos ajudantes despeja o conteúdo dos sacos na banheira enquanto outro despeja dois baldes de água. Noriel vê que o que tinha dos sacos é gelo. — O que você vai fazer afinal?
— Trazer Profaniel para cá, ora. — responde Gabriel sem olhar para ele. Depois que a banheira está cheia o suficiente, o lorde nefilim se volta para Noriel e, com a mão em seu ombro diz: — Para isso, você terá de buscá-lo.
— Como disse? — o olhar de Noriel foi cômico, mas Gabriel não riu. E tão secamente quanto disse da primeira vez, respondeu:
— isso mesmo. Você terá de buscá-lo.
— E como farei isso? — dessa vez Gabriel muda a expressão do rosto, deixando-o mais sombrio, se é que é possível.
— Essa é parte fácil. Para ir para o Inferno... você irá morrer. — Noriel deu um passo para trás, se segurando firme no cajado, ao mesmo tempo que a bela Haziel entra na sala portando alguns objetos e a porta é fechada atrás dela. Noriel tem a leve impressão que aquilo foi para ele não fugir. Se voltando, vê um dos tripulantes, o mesmo que trouxe o gelo, a abrir outro saco e dele derramar sal sobre o vão da porta. No outro extremo, velas vermelhas são acesas. — Para quê tudo isso? — diz Noriel parecendo querer mudar de assunto.
— Para os demônios não entrarem aqui. — se limitou a responder Gabriel sem explicações. Pois todos ali sabem como funciona. Noriel mesmo reflete em como, agora sendo meros mortais, eles são presas fáceis nas garras dos demônios, invisíveis e onipresentes. Entende porque daqueles rituais pagãos, o que não o tranquiliza quanto ao fato de ter ouvido claramente que iria ser morto.
— E essa história de me... me matar? — diz sem disfarçar o medo.
— Não se assuste. Veja. — e Gabriel apontou para a banheira. — Você irá entrar ali e será resfriado até seu coração parar de bater. Se nossa fisiologia é similar a dos humanos, o que eu penso que é, então você estará num estado de morte clínica. Nós teremos exatos seis minutos para fazer seu coração voltar a bater, por meio de técnicas de primeiros socorros. Senão... — e seu olho bom desvia do rosto de Noriel. — Senão ai teremos morte cerebral.
— Seis minutos?
— Estando do outro lado, o tempo não existe mais. Seis minutos será uma eternidade. O suficiente para descer ao mais profundo poço do Tártaro, resgatar Porfaniel e trazê-lo de volta. E isso me lembra, trouxe algum objeto que lhe pertencia? Claro que isso seria meio difícil. Ele andou pela Terra há mais de duzentos anos...
— Mas eu trouxe. — e Noriel, ainda sem assimilar direito a história sobre morte clínica e cerebral, tira da bolsa que sempre traz pela cintura um embrulho. Gabriel o pega e o desdobra até revelar uma camisa velha e puída. — Achei nos destroços de um museu em Londres. Sei que era dele pelo brasão dos Goodsmith. A família da mortal, Kate Goodsmith, por quem ele se apaixonou.
Gabriel franziu o cenho e pigarreou algo, entregando as roupas para seu ajudante, assim como o livro. O ajudante cuidaria de preparar as roupas para o ritual. Alheio a isso, Noriel se dá conta que Haziel traz um balde de metal com um ferro mergulhado em brasas, mas não quis saber para quê seria usado. Talvez para acender mais velas, pensou. Parece que Gabriel estava mais adiantado em seu plano do que Noriel imaginava.
— Se é assim que deve ser... — diz Noriel tirando sua túnica e se dirigindo para a banheira.
— Ótimo... com o gelo você sentirá menos a dor. — Gabriel diz tirando o ferro do balde de brasas. Noriel não percebe, pois usa sua parca concentração para tomar coragem e mergulhar no gelo. Primeiro o pé direito, calejado e sujo, depois o outro, em pior situação. O frio queima sua pele, mas ele continua.
— Es-espero... que... isso... f-funcione... — o frio lhe toma mais ainda quando senta o traseiro nu na água. Os presentes parecem sentir pena pelo sofrimento e orgulho pela coragem do nefilim. Menos Gabriel, que continua impassível preparando o ferro para ser usado. Assim, estando Noriel com gelo e água até o pescoço, Gabriel se aproxima por trás, e o empurrando pra frente pela cabeça, o marca com o ferro quente como se Noriel fosse um boi. — Aarghh!!
— Isso é para sua proteção. — diz Gabriel ao remover o ferro e ver a ferida ainda fresca que forma um símbolo antigo. — Com essa marca, você estará protegido dos espíritos imundos, desse e do outro lado. Eles não podem ler sua mente, nem te ferir. Terá caminho livre no além.
— Que... ótimo... — balbucia Noriel. Nisso, Gabriel se volta para o ajudante que ficou com o livro e a roupa e constata que ele já as preparou de acordo. Quatro nós na camisa que fica dentro de um pentagrama ainda cercado de palavras em hebraico.
— Vamos começar. — diz o Lorde se sentando em uma cadeira, enquanto observa Noriel assumir tons azulados dentro da banheira.
Todos os outros na sala fazem silêncio enquanto seus rostos refletem medo sob a luz gordurosa das velas. Eles pensam “já fomos anjos de Deus, agora sujeitos a empregar rituais pagãos! Isso é errado” como se a situação em que vivem agora fosse a certa. Como se o certo fosse Lúcifer sentado do Trono de Deus. Gabriel sabe que o ditado humano é verdadeiro: tempos desesperados pedem metidas desesperadas.
Alheio a isso, Noriel procura não pensar em nada. Ninguém lhe pediu isso e nem ele mesmo sabe se vai ajudar. Mas ajuda a não pensar na dor que sente. Se bem que a dor vai sumindo aos poucos. Ele então se sente confortável. Agora vem uma grande vontade de dormir. Seria bom dormir... É agora. Ele reconhece os sintomas da hipotermia. Seu instinto de sobrevivência o manda abrir bem os olhos e resistir. Fitando rapidamente o olhar de Gabriel, parece que ele ouve o outro dizer para se entregar ao sono, mesmo que o outro não diga nada.
Então ele assim o faz. Fecha os olhos, respira como se fossa pela última vez. O ar quente parece não ser aceito pelo seu pulmão frio. Ele tosse. As pessoas na sala avançam um passo, mas logo param. Quando eram anjos, já viram a morte muitas vezes. Ela, a morte, era um deles, tinha muitos nomes e faces. E mesmo nas guerras que se sucederam viram a morte de seus iguais. Então eles sabem ser frios o bastante.
Noriel para de tossir. Lentamente seus olhos param de piscar, ficando fechados como se mergulhasse num sono profundo. Sua pele, coberta de cristais de gelo, principalmente na região da boca e nariz, fica imóvel. Gabriel se aproxima dele e põe seus dedos pesados em seu pescoço. Suas feições mudam vagamente e ele diz aos outros.
— Temos seis minutos.
Não há mais frio. A respiração é mais fácil. Não há mais o peso da carne e dos ossos. A sensação é muito boa. Como um sonho. Agora que é mortal ele sonha e é o único momento em que não sente a angústia de ser mortal. Mas isso consegue ser melhor que um sonho... é como se não fosse mais mortal... Noriel sorri quando abre os olhos. Está escuro. Tem a impressão de estar de pé... sim... e ele vê um pequeno ponto de luz na distância. Sem perceber está andando em direção aquela luz. A luz se aproxima devagar e parece que fica mais agradável quanto mais perto dela se chega. É quando ele percebe.
— Estou morto. — Ele para de avançar, com instinto de dar meia volta e sair dali, fraqueza humana que adquiriu nos últimos anos, mas ele sabe do seu objetivo. Então dá um passo a frente e, se dando conta que não é mais um ser de carne fraco e limitado, só com a força do pensamento começa a voar - ou algo assim - em direção a luz. É como ter seus poderes angelicais novamente, ainda que incompletos. É quando a luz se aproxima...
Ele nem sente atravessá-la. Quando se dá conta, está de pé, com um terno branco e sapatos brancos. Seu rosto é jovial, seus cabelos estão curtos novamente. Sua imagem no mundo do além é a de quando era um anjo. Mas aqui ele não é um anjo, mas um espírito, e ele se encontra agora do caminho das almas. A paisagem é de um campo terreno, com gramado e árvores, e mesmo um céu sobre sua cabeça, mas tudo em tom esverdeado, frio e a certo momento sinistro. Claro, não há a presença de Deus aqui como deveria ter.
— Acho que aqui não é o seu lugar, nefilim. — um voz diz atrás de si. Noriel se volta e vê um rapaz, com corpo e rosto primitivo, como um homem das cavernas, ou mesmo ancestral do homo sapiens, vestindo-se de pele de carneiro, com um cajado na mão, pés descalços e peludos na grama e cabelos se confundindo com a barba. Noriel tem a impressão que já viu esse homem antes, num passado muito distante.
— Quem é você? — pergunta Noriel com certeza de que não lembraria pela memória. Mas logo o jovem primitivo lhe responde, e a resposta lhe causa assombro:
— Sou o primeiro a vir pra cá... Ab.El fui chamado. — Abel, filho de Adão.
Longe dali, imerso nas profundezas do Inferno, a figura esquelética presa por correntes e atada a fios parece sentir algo de diferente na ordem das coisas. Ele, erguendo os olhos cheios de rancor, com sua boca selada e medonha, parece procurar pela origem da sensação, mesmo sabendo que deve ser algum truque da sua mente. Profaniel sabe que ninguém vai tirá-lo de lá. Ninguém.
Ninguém.
* * *
A Seguir: Limbo, Purgatório e Inferno.
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