Filha dos anjos, santa milagrosa ou um soldado de uma guerra religiosa? Criada pelo Vaticano desde pequena para um objetivo nobre, seu passado é motivo de mistério e sua origem pode significar o fim do monoteísmo. Conheça a própria história do mundo através dos olhos de Sagrada Justiça.
I. “SAGRADA”
“Não se sabe ao certo de onde vem esse auto proclamado herói. Tão pouco se pode dizer se ele é humano, ou outro desses super-seres, ou mesmo um alienígena vindo à Terra ainda bebê. (...) Certa vez, um místico se dizendo fundador de uma nova religião disse que Super Justiça é um espírito salvador que através dos séculos toma distintas formas e ajuda a humanidade cumprindo uma antiga profecia de sacerdotes do deus egípcio Thot. Diz o místico que Super Justiça, em outras encarnações, já fora Noé, João Batista, Nostradamus, Gandhi e John Lenon. E tal místico afirma ser seu irmão biológico, sendo ambos filhos do Sol, ou de algum ser poderoso que mora lá dentro. O que para o povo mexicano lembra os Astecas.” - Um Novo Homem, capítulo 1.
Por: Anderson Oliveira
29 de dezembro de 2007.
Já era quase noite no Vaticano quando o cardeal D. Cláudio Hummes, prefeito da Congregação do Clero, saía de uma importante reunião na Cúria Romana e se dirigia para seu aposento. Disposto a relaxar após um dia cansativo de trabalho, resolveu apreciar uma caminhada pela cidade enquanto os turistas deixavam os museus e igrejas e a Santa Sé recebia uma divina paz naquele fim de ano europeu. Mal deixou o prédio da Cúria quando ouviu um estranho som vindo da sede da Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga Inquisição dos tempos medievais.
Hummes ouviu o que lhe parecia ser gritos de uma mulher. Gritos de dor, como se lá alguém estivesse sofrendo. Tomado pela curiosidade e preocupação, ele adentrou o corredor até chegar bem perto da grande porta de pau-brasil onde os gritos e lamentos se intensificavam mais. Agora ele podia ouvir também vozes masculinas, vozes velhas e frias que falavam ora em latim, ora em italiano, ora em outro idioma que Hummes desconhecia.
Temendo haver ali algo brutalmente pecaminoso, o cardeal abriu vagarosamente a porta a fim de ver a face de tais bandidos. Porém o que o vê o deixa sem reação.
— Pelo Altíssimo! — exclama Hummes ao ver uma jovem, não mais que uma menina de uns dezesseis anos, amarrada em uma mesa de tortura, com roupas mínimas, tendo a sua frente um maquinário antigo que emite uma forte luz azulada que parece lhe machucar no fundo da alma. Ao seu lado, dois velhos clérigos orando sob um livro que o bispo brasileiro teve a certeza de não ser a Bíblia Sagrada.
Em seguida, um dos velhos a puxou pelos longos cabelos loiros e com sua outra mão apertou sua face e lhe gritava em latim no que parecia um exorcismo. Depois o mesmo homem baixou sua mão e a esfregou pesadamente sobre seu corpo, não se importando em revelar sua nudez – e parecendo gostar muito de fazer isso – até apontar em sua barriga, abaixo do umbigo, um sinal de nascença na forma clara de duas linhas entrelaçadas.
— ... que a luz da verdade a purifique, filha da perdição! Aceite a purificação, Fátima Duarte de Sá! — dizia o homem que a toca.
Disposto a intervir e por um fim naquela loucura, D. Cláudio deu um passo a frente e segurou firme na maçaneta da porta, mas um “alto, signore!” dado por um guarda suíço o assustou. O grito do guarda também foi ouvido pelos homens dentro da sala, o que fez D. Cláudio correr na direção oposta do guarda. O velho que saiu à porta só pôde ver um clérigo correndo rumo a saída e um guarda que logo voltou aos seus afazeres sem nada perguntar. Nesse momento, o velho e seu colega decidiram parar o que estavam fazendo e irem pra suas casas.
Em casa estava Hummes, já na noite alta, com as mãos trêmulas, um terço numa e um copo de café noutra. Tinha a certeza que não conseguiria dormir depois de tudo o que viu. Tinha a certeza de que aquilo não era um mero abuso sexual. Não era um exorcismo, muito longe disso. Eles falaram um nome. Fátima... Duarte de Sá... Era isso. Quem é ela? O que queriam com ela?
Enquanto essas perguntas ainda ecoavam em sua cabeça, D. Cláudio pegou seu casaco e saiu. Seu destino era a Biblioteca Vaticana. O mais sorrateiro possível ela cruzou a cidade e entrou na biblioteca – não sem antes subornar um guarda para isso. Descendo aos mais profundos corredores do prédio, com acesso que só seu alto cargo na Santa Sé lhe conferiria, Hummes chega até uma sala onde pode escolher entre milhares de pastas com arquivos da história recente da Igreja e um computador para os arquivos digitalizados. Ele sabia que seria uma noite longa.
Ela tem sonhos. Ou seriam lembranças? As mesmas imagens se repetem na sua cabeça há mais tempo do que ela pode calcular. Lembra de quando era criança. Santarém, Bragança, Vila Real, Ourém... lugares onde morou. Sua terra natal. Portugal. O horizonte naquele mar que ela vê de repente some quando um barulho a traz à realidade. Então ela se vê num cubículo escuro e frio. Mas os sonhos logo a chamam de volta e novamente ela se vê em meio ao remanso do porto de Lisboa.
— Fátima! Venha cá! — lhe chama uma mulher.
— Sim, mamãe! — responde enquanto corre para seus braços. Logo ao lado dela está um homem. Apesar de não falar, ela sente que é seu pai.
Antes de ser novamente trazida ao cubículo por um novo ruído, ela se pega dormindo num lindo quarto. É estranho sonhar que está sonhando, mas ela vê da janela daquele quarto alguém lhe observar. Ele sempre esteve lá. A vigiando, como seu anjo protetor. E como um anjo ele voava. E seus cabelos eram dourados e brilhavam ao luar. Mas ela nunca viu seu rosto. Quando se levantava para ir até a janela não havia mais ninguém ali. Quando contava a história para seu pai, ele se ria de sua imaginação. Já sua mãe ficava séria e sempre a dizia para nunca mais falar nisso.
Um novo e dessa vez alto barulho a faz despertar para o frio. Percebe que está quase nua. Urinou enquanto estava desacordada e o cheiro já estava forte demais. Logo uma velha porta de ferro se abriu, e envolto numa luz branca, um vulto a pegou de súbito e a colocou de pé. Ela protestou, e como resposta recebeu um bofete no rosto. O homem torceu seu braço e do jeito que a tocava, só podia ter uma intenção na mente.
— Não!! — disse ela quando uma força tomou conta de si e, pegando o homem pelo pescoço, o lançou contra a parede abrindo um rombo. Assustada com o que acabara de fazer, mal percebeu outros homens entrando na sala e a segurando e com bastões a eletrocutavam até fazer dormir novamente. E assim ela voltava ao mundo dos sonhos.
D. Cláudio pôs sobre a mesa um velho e empoeirado livro, catalogado como o número 342983-D pertencente aos Arquivos Secretos do Vaticano. Anexos a suas páginas, velhos documentos amarelados de grande importância junto com recortes de jornais e anotações, fotocópias de livros de história e das mais vastas mitologias. Aquele livro, segundo como registrado no computador. Era a vida de Fátima Duarte de Sá.
“A criança foi trazida a nós pelas mãos do padre Antônio de Caminha quando tinha sete anos em mil novecentos e noventa e oito. Os moradores da vila se assustaram muito quando se espalhou a notícia de que ela tinha partido ao meio um carro que iria atropelá-la. A família não protestou em entregar a criança nas mãos do padre amigo, pois já haviam presenciado outras ações paranormais da filha” - dizia um manuscrito sem assinatura e data, ao lado de um recorte de jornal relatando o caso da menina que sobreviveu a um acidente de carro, com foto do que sobrou do veículo.
“Curiosos a estudar um possível milagre, doutores do Vaticano pediram que a menina viesse à Santa Sé. Sua chegada se deu a dois de abril de noventa e nove. Logo foi matriculada em um colégio para moças em Roma e era acompanhada por duas irmãs conterrâneas suas mais o padre Caminha. (...) Apesar da rigidez da vida sob os olhos da igreja, era uma menina feliz, com amigas e que tinha certa predileção para música brasileira. Desconfiadas do que ela ouvia, as irmãs nos entregaram suas fitas e Cds...” - diz um artigo datilografado ao lado de uma lista de nomes de artistas e de músicas. Duas delas marcadas com pincel atômico vermelho. “Segundo Sol – Cássia Eller”, “Fátima – Capital Inicial”. “Palavras de insurreição?” - finaliza o artigo.
Dom Cláudio se depara em seguida com fotos da criança. Uma criança normal a desfilar pelas calçadas de Roma vestida com uniforme do colégio acompanhada de outras meninas e uma senhora. Ele reconheceu em seu rosto juvenil o mesmo rosto da garota sob custódia inquisidora. Com um lenço limpou o suor da testa e prosseguiu sua leitura.
“Quando o segundo sol chegar...”
Ela lembra de Roma. O colégio era chato. Muito chato. Só suas amigas lhe faziam sorrir naquelas paredes velhas. Ouvindo música elas corriam pelos corredores vazios do prédio enquanto as freiras não as viam ou ouviam. Ela adorava aquelas tardes. Porém tal alegria, tal brincadeira tinha um fim quando as meninas se deparavam com uma imagem de Nossa Senhora. Ela sempre aprendeu a respeitar aquela mulher de olhos tristes que era retratada por todos os cantos da escola. Perto dela, a menina desligava o walkman, recolhia os cadernos e saia pé ante pé. Mesmo sem saber por quê.
Mas o anjo não era de pedra, e ela o via quase todas as noites. Ele a acompanhou de Portugal até aqui e sempre aparecia em sua janela. Só que agora seu quarto era no quinto andar, e ela podia ter a certeza de que ele voava de verdade. E, nesse tempo, ela sonhava que também podia voar. Era maravilhoso. Podia jurar que foi de Roma até a o Cairo naquela noite. Mas, agora mais do que nunca, ela não pode saber o que é sonho, lembrança ou realidade. O barulho a faz acordar novamente.
— La ragazza é incribile! — ouve alguém exclamar do lado de fora. Já não está mais naquele cubículo. É um lugar maior e mais limpo. Mas uma forte luz azulada que preenchia o lugar a fazia sentir sono outra vez. E enquanto sua mente mergulha no mundo das recordações, ela ainda escuta, baixinho: — Bambina d’angeli!!
— D’angeli...
“E foi quando começou o homem a multiplicar-se sobre a face da Terra e nasceram filhas a eles. E viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram.” - Gênesis 6, 1-2, datilografado com a palavra “Deus” subscrita por “Elohim” em caneta. Na mesma página, D. Cládio leu também “Os Gigantes estavam na Terra naqueles dias, e também depois, quando esses filhos de Deus coabitaram com as filhas do homem e lhes deram filhos.” - onde novamente Deus é trocado por Elohim e “Gigantes” por “Nephilim”.
“E começou a ocorrer quando os filhos dos homens se multiplicaram, que naqueles dias lhes nasceram filhas belas e atraentes. E os anjos, os Filhos do Céu, viram-nas, desejaram-nas e disseram uns para os outros: ‘Venham, vamos escolher esposas entre as filhas dos homens e gerar filhos para nós’.” - Livro de Enoque, texto apócrifo há muitos séculos tirado do cânone bíblico que Hummes vê na página posterior, junto com gravuras de aparência bem antiga. Logo abaixo, leu: “Seu corpo era branco como a neve e vermelho como um botão de rosa, e os cabelos de sua cabeça e seus cachos eram brancos como lã, e os olhos eram belos. E quando ele abria os olhos, iluminava toda a casa como o sol, e toda a casa ficava muito brilhante. Logo após ele despertar nas mãos da parteira, abriu sua boca e conversou com o Senhor da JUSTIÇA. (...) disse Lamech, a seu pai Matusalém: ‘Gerei um filho estranho, diferente do Homem, parecendo com os filhos de Deus do Céu; sua natureza é diferente e ele não é como nós... Parece-me que não veio de mim e sim dos anjos’.” - Livro de Noé, outro texto apócrifo e muito antigo.
“Pensei em meu coração”, continua o Livro de Noé, “que a concepção fosse de um dos Guardiões, um dos Sagrados... E meu coração mudou em meu interior por causa da criança. Então eu, Lamech, me apressei e fui até Bath-Enós, minha esposa, e disse a ela: ‘quero que jure pelo Altíssimo, o Senhor Supremo, o rei de todos os mundos, o dirigente dos Filhos do Céu, que me dirá a verdade, seja’...” - aqui, outra vez, uma palavra é riscada e outra é escrita à mão. Dessa vez “Guardiões” é substituído por “Nephilim”. Hummes vê ao lado uma foto do mesmo texto em hebraico, e se não esqueceu seus estudos, pôde reconhecer realmente a palavra Nephilim como original.
Junto aos textos, nos rodapés, ele leu pequenas frases como se o redator daquele dossiê se perguntasse a mesma coisa. “Filha dos anjos?”, escrevia “ou do demônio?” Junto ao rabisco, D. Cláudio viu um desenho feito pelo copista no que reconheceu como duas linhas entrelaçadas. Tal qual o sinal na barriga da moça. Outras palavras rabiscadas apareciam: “Serpente”, “Árvore da Vida”, “Caduceu”, “Sequência de DNA?”. Virando a página, como que mudando da água pro vinho, Hummes viu o cenário bíblico dar lugar à mitologia egípcia, greco-romana, e suméria... o quebra-cabeça estava apenas começando a se formar.
Ela tinha treze anos. A puberdade já lhe aflorava. Suas regras já vinham, seu corpo já tomava forma, seus olhos passavam a apreciar os rapazes romanos. E definitivamente a vida de freira não lhe parecia uma opção. Ela queria que seus seios crescessem mais, como os da Paola, sua amiga. Ela sempre foi desengonçada. Alta e magra para sua idade. Mas ela parou de crescer aos doze anos. E sabia que estava ficando pio bella.
Um dia o sobrinho da professora apareceu nos arredores. Giusepe era uns cinco anos mais velho. Atleta, dizia que iria jogar no Milan. O sonho de qualquer garota. Bastou uma tarde passeando no Coliseu para o príncipe se transformar em monstro quando Giusepe tentou agarrá-la a força. Num corredor afastado do caminho dos turistas, ele a perseguiu com palavras de gozação enquanto ela, já com sua blusa rasgada, fugia dele. Mas ele a alcançou, e sua mão passeava sobre sua perna e levantava suas saias.
Ela não lembra o que veio depois. Só lembra de ver Giusepe morto, com o pescoço torcido, sendo carregado por peritos da polícia enquanto ela era medicada numa ambulância. Desde então, após ouvir uma discussão do lado de fora de seu quarto, foi decidido que ela nunca mais sairia dali. Algo... alguma coisa na comida a deixava sonolenta, sem vontade de fazer nada. Era assim sempre. Seus dias eram bombardeados com aulas particulares. História e geografia, gramática, matemática, latim, espanhol, italiano, a santa fé católica, filosofia... mas sempre sob o mesmo ponto de vista.
De noite, sem que ninguém saiba, seu anjo a visitava. Ele parecia triste por ver ela ali. Ela podia ver seu rosto. Sempre via, mas agora não lembra. Agora só vê um borrão. Certa vez, ele veio acompanhado. Um outro homem, ou anjo, que trazia na mão uma vara, com duas cobras enroladas. Ela já tinha visto aquilo nos livros de história e nas estátuas em Roma. O símbolo do deus Mercúrio. Igual a marca que ela tem na barriga. Ela sempre achou estranho. O anjo falava. Sim, ele falava com ela. Falava de um lugar do outro lado do mar onde eles a esperavam. Quando for a hora. O reino do ouro.
“Thot é o nome em grego de Djehuty, um deus pertencente ao panteão egípcio, deus da sabedoria, um deus cordato, sábio, assistente e secretário-arquivista dos deuses. É uma divindade lunar que tem a seu cargo a sabedoria, a escrita, a aprendizagem, a magia, a medição do tempo, entre outros atributos. Era frequentemente representado como um escriba com cabeça de íbis (a ave que lhe estava consagrada). É, por vezes, identificado com Hermes Trismegisto. Sua filiação é atribuída a Ptah. Refere-se também que seria conselheiro de Rá. Sua companheira íntima, Astennu, é por vezes identificada com o próprio Thot. Tinha uma filha:. Seshat.” - artigo imprimido de uma página da internet junto com uma foto de um baixo relevo da deidade. Hummes vê ao lado outros artigos, completando este primeiro.
“Seshat era uma deusa da mitologia egípcia originária da região do Delta do Nilo associada à escrita, à astronomia, à arquitetura e à matemática. O seu nome significa "a que escreve". Recebia também os títulos de 'Senhora dos Livros' ou 'Senhora dos Construtores'. Era vista como filha de Thot, divindade também associada à escrita e ao conhecimento. Enquanto que Thot representava o conhecimento oculto, Seshat representava o conhecimento visível, que se concretizava. Tinha uma irmã chamada Mafdet que estava associada à JUSTIÇA.”
“Hermes Trismegisto é a tradução em latim do grego Ερμης ο Τρισμεγιστος. Significa 'Hermes, o três vezes grande'. Trata-se do nome dado pelos neoplatônicos, místicos e alquimistas ao deus egípcio Thot ou Djehuty, identificado com o deus grego Hermes. Ambos eram os deuses da escrita e da magia nas respectivas culturas. Thot simbolizava a lógica organizada do universo. Era relacionado aos ciclos lunares, cujas fases expressam a harmonia do universo. Referido nos escritos egípcios como 'duas vezes grande', era o deus do verbo e da sabedoria, sendo naturalmente identificado com Hermes. Na atmosfera sincrética do Império Romano, deu-se ao deus grego Hermes o epíteto do deus egípcio Thot.”
Tais explanações sobre deuses antigos tomam boa parte do dossiê. Visto o vasto material e o pouco tempo, Hummes resolve passar rapidamente pelas páginas, até porque não vê ligações conclusivas com o que procura. Aqui e ali nota nomes estranhos como Ningishzida, deus sumério cujo nome é traduzido por “senhor da árvore da vida” e Quetzalcóatl, deus do panteão asteca, cujo nome é literalmente “serpente emplumada”. A árvore e a serpente que Hummes já vira páginas anteriores. Tais deuses apresentam como atributos o domínio da escrita, matemática e da medição do tempo. Paralelos com Thot? Seriam nomes diferentes para o mesmo indivíduo?
Outra coisa que lhe chama a atenção é um artigo que fala sobre os povos meso-americanos. Nos tempos da conquista européia, muitos suspeitaram que os ameríndios eram uma das dez tribos perdidas de Israel, por terem certas semelhanças com tal povo, pois tinham lendas sobre a criação do homem a partir do barro ou argila, de um dilúvio universal e nobres Incas faziam a circuncisão. Porém um estudo lança outra teoria, dizendo que o povo americano seria descente do bíblico Caim. “E Caim afastou-se da presença de Yahweh, e viveu na terra de Node, a leste do Éden. E Caim conheceu sua mulher que concebeu e deu à luz a Enoch; E ele construiu uma cidade e deu à cidade o nome de seu filho, Enoch.” - Gênesis 4, 16-17. Tenochtitlán, capital do império Asteca, significa “Cidade de Tenoch”. Removendo-se a letra T, seria “Cidade de Enoch”. No Peru floreceu o império Inca. Inca, em sua língua natal, quer dizer soberano. Mas invertendo as sílabas, “In-Ca” vira “Ca-In”. “Intrigante!”, finaliza o texto.
O que tudo isso teria a ver com a garota? D. Cláudio custa a entender, ou talvez sua fé não lhe permita abrir a cabeça para tais teorias. Hesitante, ele vira a página e entra em um novo capítulo. O assunto: heróis.
Era meados de 2006 quando ela o viu pela primeira vez. Escoltado por uma tropa da Guarda Suíça, vestido de branco, preto com detalhes dourados, ele se apresentava perante o Santo Padre naquele domingo cerimonial. Ela o viu por uma fresta, entre suas “carcereiras” que a levaram à Basílica nesse dia importante. Ela, assim como todos ali, queria ver o campeão, o eleito de Deus. Diziam que um anjo falou com ele. Ele seria o emissário da paz. Seu nome era... Shalom.
Como ele era lindo. O sonho de qualquer garota.
Trazida ao presente com uma forte luz, por um instante ela sente dor. Mas isso dura poucos segundos, e novamente ela volta ao mundo de Morfeu. Chovia naquela noite. Ela não sabia por que estava ali. Ela, vestida com um macacão preto, bombardeada por refletores, cercada de gente estranha. Só podia reconhecer ali, entre eles, o Shalom.
— É só uma menina! — ela ouviu ele protestar contra um velho ao seu lado. — Vocês estão loucos! — dizia até ser repreendido seguido de um “observe” proferido pelo velho. Nesse momento, ela só pôde ver um dispositivo surgir do chão, disparando o que lhe parecia ser um míssil contra ela. Em choque, ela não conseguiu se mover. Shalom ameaçou intervir, mas a explosão do míssil fez ele e todos ali recuarem. Momentos depois, preocupado com o que acontecera com ela, Shalom viu incrédulo ela emergir entre os destroços completamente intacta. — Madonna mia!
Intercalando imagens confusas, entre a realidade e suas lembranças, ela vê uma grande confusão da Praça São Pedro envolvendo o Shalom. Vê de lá emergir uma carruagem dourada. Depois vê imagens chegando pela televisão do campeão morrendo em Israel. Com medo ela vislumbra a face de um monstro que se dizia um deus. Como um eco ela ouvira seu nome soar e gelar sua espinha. Ela sabia que em verdade aquele homem era sim um deus.
Na noite seguinte o anjo apareceu. Ele estava triste, como dizendo que deveria ter intervindo, devia ter tomado alguma posição. Dissera que não deveria ter seguido a ordem de seu amigo, aquele da vara, e devia sim ter tomado parte da batalha. Mas isso não iria se repetir. De agora em diante, ele iria ajudar os mais fracos. Não seria mais inerte... Ela o viu então vestido com uma roupa branca. Usava luvas e botas vermelhas com estranhos desenhos. Ele voou para longe. Nunca mais voltou.
“Shalom: o campeão da Santa Sé” - The New York Times de 16 de agosto de 2006. Tal manchete abre o capítulo com recortes de jornais do mundo todo retratando o santo Shalom, desde sua primeira aparição pública até sua morte no evento chamado de Alvorada dos Heróis, segundo nomeou a repórter Kelly Campbell da CNN. “Redentora”, “Talos”, “O Machine”, “O Arauto dos novos tempos”, “Guardiões samurais”, “Guerreira ruiva de olhos bicolores”, assim foram nomeados outros aclamados heróis do evento. Artigos mostram como seus atos naquele dia inspirou o surgimento de outros heróis ao redor do mundo.
Hummes se atentou sobre o que dizia de sua terra natal, o Brasil, com o sucesso de um programa de TV chamado Caçador de Heróis que buscava cenas desses vigilantes. Nomes como “Resgate”, “Arena”, “Revolt”, entre outros eram listados. Em seguida tinha uma página inteira sobre um notório herói que teve uma jornada curta, vindo a morrer pelas mãos de um homem comum no México: Super Justiça. Os artigos exaltavam sua força, seus poderes incríveis e seu altruísmo, também como seu fim trágico e mal explicado, difícil de engolir, mas que tornou seu possível assassino no inimigo público número um das Nações Unidas. Pouco tempo depois, sua base de operações principal, a Cidade do México, se converteria numa estranha área proibida e seus habitantes seriam zumbificados. “Coincidência?”, provoca o artigo, que ainda detalha os desenhos das luvas e botas do herói identificando-os com grifos astecas. Hummes recorda então do deus Quetzalcóatl.
Já sentindo o peso do cansaço nas costas, Hummes nota que o sol já nasce lá fora. Vendo que o dossiê tinha poucas páginas para terminar, ele resolve continuar a leitura. Porém um ruído o faz atentar para a entrada daquela sala. Cauteloso, ele fecha o livro, ajeita seus óculos e caminha até a porta do recinto, colocando meio corpo pra fora para ver se não vê ninguém por perto. Porém, quando já retornava para dentro, sentiu um forte golpe na nunca e desmaiou.
Ela o viu na revista. Super Justiça era seu nome. Ela sabia quem ele era, mas não iria contar pra ninguém. Sabia que era seu anjo misterioso que sempre a acompanhou. Ela sabia que... as memórias são confusas... mas ele a chamava de... filha. Filha? Ele a chamava de filha.
— Então, minha filha, chegará a hora em que eu vou vir te buscar, e iremos para nossa casa, a casa de nossa família. A guerra final se aproxima. Até lá, você está mais segura aqui, junto à Congregação dos Mortais. Perdoe, minha querida, mas se ele te encontrar, se ele souber que nós existimos, não haverá esperança. É melhor que esqueça que me viu aqui, filha. É melhor esquecer... até chegar a hora...
— Chegou a hora. — uma voz fria a rouca a acorda. Com a vista embaçada, ela tenta ver um vulto envolto numa forte luz. Ela está tonta e confusa. Sonhos estranhos. O homem que lhe falou a puxa pelo braço, mas ela não resiste, e o acompanha para fora.
Praça São Pedro, ao meio-dia.
Uma multidão se aglomera para ouvir a homilia do Papa Bento XVI naquele domingo frio enquanto alguns especulam porque há tantos jornalistas ali. Será que foi marcado algum evento? Algum pronunciamento especial? O Natal já passou, não havia aqui maior motivo. Ninguém sabe a resposta, nem mesmo os jornalistas. Todos apenas esperam o papa aparecer na sacada naquela Praça recém reformada após o rombo que ficou quando a carruagem dourada foi roubada dali.[1]
Então o santo-padre aparece cercado por seus secretários. Saudando todos com sua benção, ele começa a discursar intercalando os idiomas usados falando dos mais diversos assuntos, desde a postura da igreja quanto as práticas sexuais da juventude até pedindo pelo fim dos conflitos no Oriente Médio. Quando os repórteres já começavam a deixar o local desgostosos, o velho papa anuncia:
— Hoje apresentamos nossa nova esperança contra as maldades do mundo. Após o heróico fim daquele que conhecem como Shalom, a Igreja logo se apressou em encontrar um substituto na missão de defender os mais fracos. E aqui está! — então uma figura envolta por uma capa com capuz se aproxima da sacada. De súbito, a pessoa salta contra a multidão que se assusta, mas que vê ela ficar pairando sobre suas cabeças, voando sobre a praça. Extasiada, a multidão vê a pessoa se livrar da capa enquanto Sua Santidade diz: — Esta é a filha da Santa Madre Igreja, sob as bênçãos de Deus e com a Glória dos anjos. Que este novo ano que se inicia tenha sua proteção. Está é a Sagrada Justiça!
Acordando em seu apartamento, D. Cláudio Hummes ouve tal nome ecoar por toda a cidade. Com forte dor de cabeça, ele vai até a janela e vê uma garota voando sobre a praça, vestida de branco, com detalhes em azul claro como o manto de N. Senhora de Fátima. Seus cabelos dourados ao vento e um visor azul transparente a cobrir seus olhos. É ela. Fátima Duarte de Sá. Sagrada Justiça.
— Santo Deus! — exclama D. Cláudio. — Quem vocês pensam que são?
_____________________
[1] - Isso ocorre no UNF 1.0, no mega evento Alvorada dos Heróis, em breve aqui no novo UNF! (ou não).
A seguir: Ecos do Passado.
“Não se sabe ao certo de onde vem esse auto proclamado herói. Tão pouco se pode dizer se ele é humano, ou outro desses super-seres, ou mesmo um alienígena vindo à Terra ainda bebê. (...) Certa vez, um místico se dizendo fundador de uma nova religião disse que Super Justiça é um espírito salvador que através dos séculos toma distintas formas e ajuda a humanidade cumprindo uma antiga profecia de sacerdotes do deus egípcio Thot. Diz o místico que Super Justiça, em outras encarnações, já fora Noé, João Batista, Nostradamus, Gandhi e John Lenon. E tal místico afirma ser seu irmão biológico, sendo ambos filhos do Sol, ou de algum ser poderoso que mora lá dentro. O que para o povo mexicano lembra os Astecas.” - Um Novo Homem, capítulo 1.
Por: Anderson Oliveira
29 de dezembro de 2007.
Já era quase noite no Vaticano quando o cardeal D. Cláudio Hummes, prefeito da Congregação do Clero, saía de uma importante reunião na Cúria Romana e se dirigia para seu aposento. Disposto a relaxar após um dia cansativo de trabalho, resolveu apreciar uma caminhada pela cidade enquanto os turistas deixavam os museus e igrejas e a Santa Sé recebia uma divina paz naquele fim de ano europeu. Mal deixou o prédio da Cúria quando ouviu um estranho som vindo da sede da Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga Inquisição dos tempos medievais.
Hummes ouviu o que lhe parecia ser gritos de uma mulher. Gritos de dor, como se lá alguém estivesse sofrendo. Tomado pela curiosidade e preocupação, ele adentrou o corredor até chegar bem perto da grande porta de pau-brasil onde os gritos e lamentos se intensificavam mais. Agora ele podia ouvir também vozes masculinas, vozes velhas e frias que falavam ora em latim, ora em italiano, ora em outro idioma que Hummes desconhecia.
Temendo haver ali algo brutalmente pecaminoso, o cardeal abriu vagarosamente a porta a fim de ver a face de tais bandidos. Porém o que o vê o deixa sem reação.
— Pelo Altíssimo! — exclama Hummes ao ver uma jovem, não mais que uma menina de uns dezesseis anos, amarrada em uma mesa de tortura, com roupas mínimas, tendo a sua frente um maquinário antigo que emite uma forte luz azulada que parece lhe machucar no fundo da alma. Ao seu lado, dois velhos clérigos orando sob um livro que o bispo brasileiro teve a certeza de não ser a Bíblia Sagrada.
Em seguida, um dos velhos a puxou pelos longos cabelos loiros e com sua outra mão apertou sua face e lhe gritava em latim no que parecia um exorcismo. Depois o mesmo homem baixou sua mão e a esfregou pesadamente sobre seu corpo, não se importando em revelar sua nudez – e parecendo gostar muito de fazer isso – até apontar em sua barriga, abaixo do umbigo, um sinal de nascença na forma clara de duas linhas entrelaçadas.
— ... que a luz da verdade a purifique, filha da perdição! Aceite a purificação, Fátima Duarte de Sá! — dizia o homem que a toca.
Disposto a intervir e por um fim naquela loucura, D. Cláudio deu um passo a frente e segurou firme na maçaneta da porta, mas um “alto, signore!” dado por um guarda suíço o assustou. O grito do guarda também foi ouvido pelos homens dentro da sala, o que fez D. Cláudio correr na direção oposta do guarda. O velho que saiu à porta só pôde ver um clérigo correndo rumo a saída e um guarda que logo voltou aos seus afazeres sem nada perguntar. Nesse momento, o velho e seu colega decidiram parar o que estavam fazendo e irem pra suas casas.
Em casa estava Hummes, já na noite alta, com as mãos trêmulas, um terço numa e um copo de café noutra. Tinha a certeza que não conseguiria dormir depois de tudo o que viu. Tinha a certeza de que aquilo não era um mero abuso sexual. Não era um exorcismo, muito longe disso. Eles falaram um nome. Fátima... Duarte de Sá... Era isso. Quem é ela? O que queriam com ela?
Enquanto essas perguntas ainda ecoavam em sua cabeça, D. Cláudio pegou seu casaco e saiu. Seu destino era a Biblioteca Vaticana. O mais sorrateiro possível ela cruzou a cidade e entrou na biblioteca – não sem antes subornar um guarda para isso. Descendo aos mais profundos corredores do prédio, com acesso que só seu alto cargo na Santa Sé lhe conferiria, Hummes chega até uma sala onde pode escolher entre milhares de pastas com arquivos da história recente da Igreja e um computador para os arquivos digitalizados. Ele sabia que seria uma noite longa.
Ela tem sonhos. Ou seriam lembranças? As mesmas imagens se repetem na sua cabeça há mais tempo do que ela pode calcular. Lembra de quando era criança. Santarém, Bragança, Vila Real, Ourém... lugares onde morou. Sua terra natal. Portugal. O horizonte naquele mar que ela vê de repente some quando um barulho a traz à realidade. Então ela se vê num cubículo escuro e frio. Mas os sonhos logo a chamam de volta e novamente ela se vê em meio ao remanso do porto de Lisboa.
— Fátima! Venha cá! — lhe chama uma mulher.
— Sim, mamãe! — responde enquanto corre para seus braços. Logo ao lado dela está um homem. Apesar de não falar, ela sente que é seu pai.
Antes de ser novamente trazida ao cubículo por um novo ruído, ela se pega dormindo num lindo quarto. É estranho sonhar que está sonhando, mas ela vê da janela daquele quarto alguém lhe observar. Ele sempre esteve lá. A vigiando, como seu anjo protetor. E como um anjo ele voava. E seus cabelos eram dourados e brilhavam ao luar. Mas ela nunca viu seu rosto. Quando se levantava para ir até a janela não havia mais ninguém ali. Quando contava a história para seu pai, ele se ria de sua imaginação. Já sua mãe ficava séria e sempre a dizia para nunca mais falar nisso.
Um novo e dessa vez alto barulho a faz despertar para o frio. Percebe que está quase nua. Urinou enquanto estava desacordada e o cheiro já estava forte demais. Logo uma velha porta de ferro se abriu, e envolto numa luz branca, um vulto a pegou de súbito e a colocou de pé. Ela protestou, e como resposta recebeu um bofete no rosto. O homem torceu seu braço e do jeito que a tocava, só podia ter uma intenção na mente.
— Não!! — disse ela quando uma força tomou conta de si e, pegando o homem pelo pescoço, o lançou contra a parede abrindo um rombo. Assustada com o que acabara de fazer, mal percebeu outros homens entrando na sala e a segurando e com bastões a eletrocutavam até fazer dormir novamente. E assim ela voltava ao mundo dos sonhos.
D. Cláudio pôs sobre a mesa um velho e empoeirado livro, catalogado como o número 342983-D pertencente aos Arquivos Secretos do Vaticano. Anexos a suas páginas, velhos documentos amarelados de grande importância junto com recortes de jornais e anotações, fotocópias de livros de história e das mais vastas mitologias. Aquele livro, segundo como registrado no computador. Era a vida de Fátima Duarte de Sá.
“A criança foi trazida a nós pelas mãos do padre Antônio de Caminha quando tinha sete anos em mil novecentos e noventa e oito. Os moradores da vila se assustaram muito quando se espalhou a notícia de que ela tinha partido ao meio um carro que iria atropelá-la. A família não protestou em entregar a criança nas mãos do padre amigo, pois já haviam presenciado outras ações paranormais da filha” - dizia um manuscrito sem assinatura e data, ao lado de um recorte de jornal relatando o caso da menina que sobreviveu a um acidente de carro, com foto do que sobrou do veículo.
“Curiosos a estudar um possível milagre, doutores do Vaticano pediram que a menina viesse à Santa Sé. Sua chegada se deu a dois de abril de noventa e nove. Logo foi matriculada em um colégio para moças em Roma e era acompanhada por duas irmãs conterrâneas suas mais o padre Caminha. (...) Apesar da rigidez da vida sob os olhos da igreja, era uma menina feliz, com amigas e que tinha certa predileção para música brasileira. Desconfiadas do que ela ouvia, as irmãs nos entregaram suas fitas e Cds...” - diz um artigo datilografado ao lado de uma lista de nomes de artistas e de músicas. Duas delas marcadas com pincel atômico vermelho. “Segundo Sol – Cássia Eller”, “Fátima – Capital Inicial”. “Palavras de insurreição?” - finaliza o artigo.
Dom Cláudio se depara em seguida com fotos da criança. Uma criança normal a desfilar pelas calçadas de Roma vestida com uniforme do colégio acompanhada de outras meninas e uma senhora. Ele reconheceu em seu rosto juvenil o mesmo rosto da garota sob custódia inquisidora. Com um lenço limpou o suor da testa e prosseguiu sua leitura.
“Quando o segundo sol chegar...”
Ela lembra de Roma. O colégio era chato. Muito chato. Só suas amigas lhe faziam sorrir naquelas paredes velhas. Ouvindo música elas corriam pelos corredores vazios do prédio enquanto as freiras não as viam ou ouviam. Ela adorava aquelas tardes. Porém tal alegria, tal brincadeira tinha um fim quando as meninas se deparavam com uma imagem de Nossa Senhora. Ela sempre aprendeu a respeitar aquela mulher de olhos tristes que era retratada por todos os cantos da escola. Perto dela, a menina desligava o walkman, recolhia os cadernos e saia pé ante pé. Mesmo sem saber por quê.
Mas o anjo não era de pedra, e ela o via quase todas as noites. Ele a acompanhou de Portugal até aqui e sempre aparecia em sua janela. Só que agora seu quarto era no quinto andar, e ela podia ter a certeza de que ele voava de verdade. E, nesse tempo, ela sonhava que também podia voar. Era maravilhoso. Podia jurar que foi de Roma até a o Cairo naquela noite. Mas, agora mais do que nunca, ela não pode saber o que é sonho, lembrança ou realidade. O barulho a faz acordar novamente.
— La ragazza é incribile! — ouve alguém exclamar do lado de fora. Já não está mais naquele cubículo. É um lugar maior e mais limpo. Mas uma forte luz azulada que preenchia o lugar a fazia sentir sono outra vez. E enquanto sua mente mergulha no mundo das recordações, ela ainda escuta, baixinho: — Bambina d’angeli!!
— D’angeli...
“E foi quando começou o homem a multiplicar-se sobre a face da Terra e nasceram filhas a eles. E viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram.” - Gênesis 6, 1-2, datilografado com a palavra “Deus” subscrita por “Elohim” em caneta. Na mesma página, D. Cládio leu também “Os Gigantes estavam na Terra naqueles dias, e também depois, quando esses filhos de Deus coabitaram com as filhas do homem e lhes deram filhos.” - onde novamente Deus é trocado por Elohim e “Gigantes” por “Nephilim”.
“E começou a ocorrer quando os filhos dos homens se multiplicaram, que naqueles dias lhes nasceram filhas belas e atraentes. E os anjos, os Filhos do Céu, viram-nas, desejaram-nas e disseram uns para os outros: ‘Venham, vamos escolher esposas entre as filhas dos homens e gerar filhos para nós’.” - Livro de Enoque, texto apócrifo há muitos séculos tirado do cânone bíblico que Hummes vê na página posterior, junto com gravuras de aparência bem antiga. Logo abaixo, leu: “Seu corpo era branco como a neve e vermelho como um botão de rosa, e os cabelos de sua cabeça e seus cachos eram brancos como lã, e os olhos eram belos. E quando ele abria os olhos, iluminava toda a casa como o sol, e toda a casa ficava muito brilhante. Logo após ele despertar nas mãos da parteira, abriu sua boca e conversou com o Senhor da JUSTIÇA. (...) disse Lamech, a seu pai Matusalém: ‘Gerei um filho estranho, diferente do Homem, parecendo com os filhos de Deus do Céu; sua natureza é diferente e ele não é como nós... Parece-me que não veio de mim e sim dos anjos’.” - Livro de Noé, outro texto apócrifo e muito antigo.
“Pensei em meu coração”, continua o Livro de Noé, “que a concepção fosse de um dos Guardiões, um dos Sagrados... E meu coração mudou em meu interior por causa da criança. Então eu, Lamech, me apressei e fui até Bath-Enós, minha esposa, e disse a ela: ‘quero que jure pelo Altíssimo, o Senhor Supremo, o rei de todos os mundos, o dirigente dos Filhos do Céu, que me dirá a verdade, seja’...” - aqui, outra vez, uma palavra é riscada e outra é escrita à mão. Dessa vez “Guardiões” é substituído por “Nephilim”. Hummes vê ao lado uma foto do mesmo texto em hebraico, e se não esqueceu seus estudos, pôde reconhecer realmente a palavra Nephilim como original.
Junto aos textos, nos rodapés, ele leu pequenas frases como se o redator daquele dossiê se perguntasse a mesma coisa. “Filha dos anjos?”, escrevia “ou do demônio?” Junto ao rabisco, D. Cláudio viu um desenho feito pelo copista no que reconheceu como duas linhas entrelaçadas. Tal qual o sinal na barriga da moça. Outras palavras rabiscadas apareciam: “Serpente”, “Árvore da Vida”, “Caduceu”, “Sequência de DNA?”. Virando a página, como que mudando da água pro vinho, Hummes viu o cenário bíblico dar lugar à mitologia egípcia, greco-romana, e suméria... o quebra-cabeça estava apenas começando a se formar.
Ela tinha treze anos. A puberdade já lhe aflorava. Suas regras já vinham, seu corpo já tomava forma, seus olhos passavam a apreciar os rapazes romanos. E definitivamente a vida de freira não lhe parecia uma opção. Ela queria que seus seios crescessem mais, como os da Paola, sua amiga. Ela sempre foi desengonçada. Alta e magra para sua idade. Mas ela parou de crescer aos doze anos. E sabia que estava ficando pio bella.
Um dia o sobrinho da professora apareceu nos arredores. Giusepe era uns cinco anos mais velho. Atleta, dizia que iria jogar no Milan. O sonho de qualquer garota. Bastou uma tarde passeando no Coliseu para o príncipe se transformar em monstro quando Giusepe tentou agarrá-la a força. Num corredor afastado do caminho dos turistas, ele a perseguiu com palavras de gozação enquanto ela, já com sua blusa rasgada, fugia dele. Mas ele a alcançou, e sua mão passeava sobre sua perna e levantava suas saias.
Ela não lembra o que veio depois. Só lembra de ver Giusepe morto, com o pescoço torcido, sendo carregado por peritos da polícia enquanto ela era medicada numa ambulância. Desde então, após ouvir uma discussão do lado de fora de seu quarto, foi decidido que ela nunca mais sairia dali. Algo... alguma coisa na comida a deixava sonolenta, sem vontade de fazer nada. Era assim sempre. Seus dias eram bombardeados com aulas particulares. História e geografia, gramática, matemática, latim, espanhol, italiano, a santa fé católica, filosofia... mas sempre sob o mesmo ponto de vista.
De noite, sem que ninguém saiba, seu anjo a visitava. Ele parecia triste por ver ela ali. Ela podia ver seu rosto. Sempre via, mas agora não lembra. Agora só vê um borrão. Certa vez, ele veio acompanhado. Um outro homem, ou anjo, que trazia na mão uma vara, com duas cobras enroladas. Ela já tinha visto aquilo nos livros de história e nas estátuas em Roma. O símbolo do deus Mercúrio. Igual a marca que ela tem na barriga. Ela sempre achou estranho. O anjo falava. Sim, ele falava com ela. Falava de um lugar do outro lado do mar onde eles a esperavam. Quando for a hora. O reino do ouro.
“Thot é o nome em grego de Djehuty, um deus pertencente ao panteão egípcio, deus da sabedoria, um deus cordato, sábio, assistente e secretário-arquivista dos deuses. É uma divindade lunar que tem a seu cargo a sabedoria, a escrita, a aprendizagem, a magia, a medição do tempo, entre outros atributos. Era frequentemente representado como um escriba com cabeça de íbis (a ave que lhe estava consagrada). É, por vezes, identificado com Hermes Trismegisto. Sua filiação é atribuída a Ptah. Refere-se também que seria conselheiro de Rá. Sua companheira íntima, Astennu, é por vezes identificada com o próprio Thot. Tinha uma filha:. Seshat.” - artigo imprimido de uma página da internet junto com uma foto de um baixo relevo da deidade. Hummes vê ao lado outros artigos, completando este primeiro.
“Seshat era uma deusa da mitologia egípcia originária da região do Delta do Nilo associada à escrita, à astronomia, à arquitetura e à matemática. O seu nome significa "a que escreve". Recebia também os títulos de 'Senhora dos Livros' ou 'Senhora dos Construtores'. Era vista como filha de Thot, divindade também associada à escrita e ao conhecimento. Enquanto que Thot representava o conhecimento oculto, Seshat representava o conhecimento visível, que se concretizava. Tinha uma irmã chamada Mafdet que estava associada à JUSTIÇA.”
“Hermes Trismegisto é a tradução em latim do grego Ερμης ο Τρισμεγιστος. Significa 'Hermes, o três vezes grande'. Trata-se do nome dado pelos neoplatônicos, místicos e alquimistas ao deus egípcio Thot ou Djehuty, identificado com o deus grego Hermes. Ambos eram os deuses da escrita e da magia nas respectivas culturas. Thot simbolizava a lógica organizada do universo. Era relacionado aos ciclos lunares, cujas fases expressam a harmonia do universo. Referido nos escritos egípcios como 'duas vezes grande', era o deus do verbo e da sabedoria, sendo naturalmente identificado com Hermes. Na atmosfera sincrética do Império Romano, deu-se ao deus grego Hermes o epíteto do deus egípcio Thot.”
Tais explanações sobre deuses antigos tomam boa parte do dossiê. Visto o vasto material e o pouco tempo, Hummes resolve passar rapidamente pelas páginas, até porque não vê ligações conclusivas com o que procura. Aqui e ali nota nomes estranhos como Ningishzida, deus sumério cujo nome é traduzido por “senhor da árvore da vida” e Quetzalcóatl, deus do panteão asteca, cujo nome é literalmente “serpente emplumada”. A árvore e a serpente que Hummes já vira páginas anteriores. Tais deuses apresentam como atributos o domínio da escrita, matemática e da medição do tempo. Paralelos com Thot? Seriam nomes diferentes para o mesmo indivíduo?
Outra coisa que lhe chama a atenção é um artigo que fala sobre os povos meso-americanos. Nos tempos da conquista européia, muitos suspeitaram que os ameríndios eram uma das dez tribos perdidas de Israel, por terem certas semelhanças com tal povo, pois tinham lendas sobre a criação do homem a partir do barro ou argila, de um dilúvio universal e nobres Incas faziam a circuncisão. Porém um estudo lança outra teoria, dizendo que o povo americano seria descente do bíblico Caim. “E Caim afastou-se da presença de Yahweh, e viveu na terra de Node, a leste do Éden. E Caim conheceu sua mulher que concebeu e deu à luz a Enoch; E ele construiu uma cidade e deu à cidade o nome de seu filho, Enoch.” - Gênesis 4, 16-17. Tenochtitlán, capital do império Asteca, significa “Cidade de Tenoch”. Removendo-se a letra T, seria “Cidade de Enoch”. No Peru floreceu o império Inca. Inca, em sua língua natal, quer dizer soberano. Mas invertendo as sílabas, “In-Ca” vira “Ca-In”. “Intrigante!”, finaliza o texto.
O que tudo isso teria a ver com a garota? D. Cláudio custa a entender, ou talvez sua fé não lhe permita abrir a cabeça para tais teorias. Hesitante, ele vira a página e entra em um novo capítulo. O assunto: heróis.
Era meados de 2006 quando ela o viu pela primeira vez. Escoltado por uma tropa da Guarda Suíça, vestido de branco, preto com detalhes dourados, ele se apresentava perante o Santo Padre naquele domingo cerimonial. Ela o viu por uma fresta, entre suas “carcereiras” que a levaram à Basílica nesse dia importante. Ela, assim como todos ali, queria ver o campeão, o eleito de Deus. Diziam que um anjo falou com ele. Ele seria o emissário da paz. Seu nome era... Shalom.
Como ele era lindo. O sonho de qualquer garota.
Trazida ao presente com uma forte luz, por um instante ela sente dor. Mas isso dura poucos segundos, e novamente ela volta ao mundo de Morfeu. Chovia naquela noite. Ela não sabia por que estava ali. Ela, vestida com um macacão preto, bombardeada por refletores, cercada de gente estranha. Só podia reconhecer ali, entre eles, o Shalom.
— É só uma menina! — ela ouviu ele protestar contra um velho ao seu lado. — Vocês estão loucos! — dizia até ser repreendido seguido de um “observe” proferido pelo velho. Nesse momento, ela só pôde ver um dispositivo surgir do chão, disparando o que lhe parecia ser um míssil contra ela. Em choque, ela não conseguiu se mover. Shalom ameaçou intervir, mas a explosão do míssil fez ele e todos ali recuarem. Momentos depois, preocupado com o que acontecera com ela, Shalom viu incrédulo ela emergir entre os destroços completamente intacta. — Madonna mia!
Intercalando imagens confusas, entre a realidade e suas lembranças, ela vê uma grande confusão da Praça São Pedro envolvendo o Shalom. Vê de lá emergir uma carruagem dourada. Depois vê imagens chegando pela televisão do campeão morrendo em Israel. Com medo ela vislumbra a face de um monstro que se dizia um deus. Como um eco ela ouvira seu nome soar e gelar sua espinha. Ela sabia que em verdade aquele homem era sim um deus.
Na noite seguinte o anjo apareceu. Ele estava triste, como dizendo que deveria ter intervindo, devia ter tomado alguma posição. Dissera que não deveria ter seguido a ordem de seu amigo, aquele da vara, e devia sim ter tomado parte da batalha. Mas isso não iria se repetir. De agora em diante, ele iria ajudar os mais fracos. Não seria mais inerte... Ela o viu então vestido com uma roupa branca. Usava luvas e botas vermelhas com estranhos desenhos. Ele voou para longe. Nunca mais voltou.
“Shalom: o campeão da Santa Sé” - The New York Times de 16 de agosto de 2006. Tal manchete abre o capítulo com recortes de jornais do mundo todo retratando o santo Shalom, desde sua primeira aparição pública até sua morte no evento chamado de Alvorada dos Heróis, segundo nomeou a repórter Kelly Campbell da CNN. “Redentora”, “Talos”, “O Machine”, “O Arauto dos novos tempos”, “Guardiões samurais”, “Guerreira ruiva de olhos bicolores”, assim foram nomeados outros aclamados heróis do evento. Artigos mostram como seus atos naquele dia inspirou o surgimento de outros heróis ao redor do mundo.
Hummes se atentou sobre o que dizia de sua terra natal, o Brasil, com o sucesso de um programa de TV chamado Caçador de Heróis que buscava cenas desses vigilantes. Nomes como “Resgate”, “Arena”, “Revolt”, entre outros eram listados. Em seguida tinha uma página inteira sobre um notório herói que teve uma jornada curta, vindo a morrer pelas mãos de um homem comum no México: Super Justiça. Os artigos exaltavam sua força, seus poderes incríveis e seu altruísmo, também como seu fim trágico e mal explicado, difícil de engolir, mas que tornou seu possível assassino no inimigo público número um das Nações Unidas. Pouco tempo depois, sua base de operações principal, a Cidade do México, se converteria numa estranha área proibida e seus habitantes seriam zumbificados. “Coincidência?”, provoca o artigo, que ainda detalha os desenhos das luvas e botas do herói identificando-os com grifos astecas. Hummes recorda então do deus Quetzalcóatl.
Já sentindo o peso do cansaço nas costas, Hummes nota que o sol já nasce lá fora. Vendo que o dossiê tinha poucas páginas para terminar, ele resolve continuar a leitura. Porém um ruído o faz atentar para a entrada daquela sala. Cauteloso, ele fecha o livro, ajeita seus óculos e caminha até a porta do recinto, colocando meio corpo pra fora para ver se não vê ninguém por perto. Porém, quando já retornava para dentro, sentiu um forte golpe na nunca e desmaiou.
Ela o viu na revista. Super Justiça era seu nome. Ela sabia quem ele era, mas não iria contar pra ninguém. Sabia que era seu anjo misterioso que sempre a acompanhou. Ela sabia que... as memórias são confusas... mas ele a chamava de... filha. Filha? Ele a chamava de filha.
— Então, minha filha, chegará a hora em que eu vou vir te buscar, e iremos para nossa casa, a casa de nossa família. A guerra final se aproxima. Até lá, você está mais segura aqui, junto à Congregação dos Mortais. Perdoe, minha querida, mas se ele te encontrar, se ele souber que nós existimos, não haverá esperança. É melhor que esqueça que me viu aqui, filha. É melhor esquecer... até chegar a hora...
— Chegou a hora. — uma voz fria a rouca a acorda. Com a vista embaçada, ela tenta ver um vulto envolto numa forte luz. Ela está tonta e confusa. Sonhos estranhos. O homem que lhe falou a puxa pelo braço, mas ela não resiste, e o acompanha para fora.
Praça São Pedro, ao meio-dia.
Uma multidão se aglomera para ouvir a homilia do Papa Bento XVI naquele domingo frio enquanto alguns especulam porque há tantos jornalistas ali. Será que foi marcado algum evento? Algum pronunciamento especial? O Natal já passou, não havia aqui maior motivo. Ninguém sabe a resposta, nem mesmo os jornalistas. Todos apenas esperam o papa aparecer na sacada naquela Praça recém reformada após o rombo que ficou quando a carruagem dourada foi roubada dali.[1]
Então o santo-padre aparece cercado por seus secretários. Saudando todos com sua benção, ele começa a discursar intercalando os idiomas usados falando dos mais diversos assuntos, desde a postura da igreja quanto as práticas sexuais da juventude até pedindo pelo fim dos conflitos no Oriente Médio. Quando os repórteres já começavam a deixar o local desgostosos, o velho papa anuncia:
— Hoje apresentamos nossa nova esperança contra as maldades do mundo. Após o heróico fim daquele que conhecem como Shalom, a Igreja logo se apressou em encontrar um substituto na missão de defender os mais fracos. E aqui está! — então uma figura envolta por uma capa com capuz se aproxima da sacada. De súbito, a pessoa salta contra a multidão que se assusta, mas que vê ela ficar pairando sobre suas cabeças, voando sobre a praça. Extasiada, a multidão vê a pessoa se livrar da capa enquanto Sua Santidade diz: — Esta é a filha da Santa Madre Igreja, sob as bênçãos de Deus e com a Glória dos anjos. Que este novo ano que se inicia tenha sua proteção. Está é a Sagrada Justiça!
Acordando em seu apartamento, D. Cláudio Hummes ouve tal nome ecoar por toda a cidade. Com forte dor de cabeça, ele vai até a janela e vê uma garota voando sobre a praça, vestida de branco, com detalhes em azul claro como o manto de N. Senhora de Fátima. Seus cabelos dourados ao vento e um visor azul transparente a cobrir seus olhos. É ela. Fátima Duarte de Sá. Sagrada Justiça.
— Santo Deus! — exclama D. Cláudio. — Quem vocês pensam que são?
_____________________
[1] - Isso ocorre no UNF 1.0, no mega evento Alvorada dos Heróis, em breve aqui no novo UNF! (ou não).
A seguir: Ecos do Passado.
+ comentários + 1 comentários
uau
gostei desse inicio, bem instigante.
parabéns.
Postar um comentário